A questão das fronteiras entre o biográfico e o ficcional em Lorde, de João Gilberto Noll -
apontamentos para aula da disciplina A narrativa literária no Brasil
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A primeira questão observada sobre esse tema em Noll é a complexidade das relações estabelecidas entre o real e o ficcional, aquilo que aponta Eneida Souza no texto sobre crítica biográfica: nesta relação, os embrincamentos são sutis, porque não são fatos visíveis a serem apenas localizados, mas, como Souza coloca, são pontes metafóricas – é uma representação do material vivido.
Ao ler a obra de Noll, como os romances Berkeley em Bellagio e Lorde – em que as personagens narradoras são também escritores convidados a criar em terras estrangeiras (Berkeley, Itália, Londres), como o próprio Noll –, o leitor não consegue determinar com facilidade, onde termina o biográfico e onde começa o ficcional, tende a tomar a obra como biográfica, mas essa atitude encontra dificuldades no decorrer da trama, por não saber lidar com o biográfico enquanto graus de inserção do sujeito na escrita, usando uma expressão de Eneida Souza. Ela afirma que essa reelaboração imaginária da experiência estabelece associações e choques ao emergirem no texto.
Assim, a questão biográfica em Noll, os temas recorrentes em sua fala cotidianizada, em depoimentos e entrevistas, emergem no texto ficcional, ora produzindo contigüidades, ora rupturas bruscas.
Ao ler a obra de Noll, como os romances Berkeley em Bellagio e Lorde – em que as personagens narradoras são também escritores convidados a criar em terras estrangeiras (Berkeley, Itália, Londres), como o próprio Noll –, o leitor não consegue determinar com facilidade, onde termina o biográfico e onde começa o ficcional, tende a tomar a obra como biográfica, mas essa atitude encontra dificuldades no decorrer da trama, por não saber lidar com o biográfico enquanto graus de inserção do sujeito na escrita, usando uma expressão de Eneida Souza. Ela afirma que essa reelaboração imaginária da experiência estabelece associações e choques ao emergirem no texto.
Assim, a questão biográfica em Noll, os temas recorrentes em sua fala cotidianizada, em depoimentos e entrevistas, emergem no texto ficcional, ora produzindo contigüidades, ora rupturas bruscas.
Esta é mesmo uma questão complexa em Noll, seu próprio discurso, sobre sua obra, demonstra. A partir da leitura de suas entrevistas (disponíveis em sites da internet), notamos que, diversas vezes, Noll sente necessidade de pontuar que sua escrita não é biográfica. Contudo, no decorrer das perguntas articuladas pelos entrevistadores, que localizam algumas falas na obra ficcional, ele parece amenizar a afirmativa ao dizer que a literatura é biográfica no sentido que é “existencialista”, um trabalho a partir do vivenciado, marca de um olhar sobre as coisas.
Só a partir do romance Berkeley em Bellagio, a relação do autor com o biográfico muda, o que pode ser observado através de uma análise diacrônica das entrevistas. Como foi dito, há um narrador-escritor que conta a história, situado nesses dois cenários hospedeiros, em que também esteve Noll.
Só a partir do romance Berkeley em Bellagio, a relação do autor com o biográfico muda, o que pode ser observado através de uma análise diacrônica das entrevistas. Como foi dito, há um narrador-escritor que conta a história, situado nesses dois cenários hospedeiros, em que também esteve Noll.
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É seguramente o meu livro mais pessoal. Não apenas porque ele mostra um escritor gaúcho dando aulas de Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia em Berkeley, e depois escrevendo seu romance numa fundação para escritores em Bellagio, norte da Itália, estágios que efetivamente vivi enquanto cidadão e autor; mas principalmente porque pela primeira vez dou um nome para um protagonista, e este nome é João, um homem em certos momentos decididamente autobiográfico, embora continuamente entre um desvelar-se e, na mesma medida, um ocultar-se - travestido então com a máscara ficcional. É um jogo. E a consciência do jogo me alegra, me deixa quase eufórico. (2002 – Jornal Estado de Minas)
Quando pus os pés em Berkeley, na Califórnia, senti de imediato que escreveria um romance a partir dessa experiência. Por quê? Porque o não-familiar, o estranhamento, enfim, acende-me o desejo da ficção. (Jornal do Brasil)
Mas, com a maturidade, já não procuro em Marte o que posso mostrar com o aval do meu próprio paladar, olfato e, sobretudo, tato. Sim, literatura é uma fricção com o real, mas para nele tentar novas aproximações, novas produções de sentido. (Estado de São Paulo, 2003)
Quando pus os pés em Berkeley, na Califórnia, senti de imediato que escreveria um romance a partir dessa experiência. Por quê? Porque o não-familiar, o estranhamento, enfim, acende-me o desejo da ficção. (Jornal do Brasil)
Mas, com a maturidade, já não procuro em Marte o que posso mostrar com o aval do meu próprio paladar, olfato e, sobretudo, tato. Sim, literatura é uma fricção com o real, mas para nele tentar novas aproximações, novas produções de sentido. (Estado de São Paulo, 2003)
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Sobre o romance Lorde, Noll diz, em entrevista para a jornalista e escritora baiana Kátia Borges, publicada no Jornal ATarde, que o biográfico encontra-se limitado ao início do livro, situado no espaço do aeroporto. Mas, em toda a narrativa, elementos da história de Noll são construídos como marcas do seu personagem-narrador. Essas aproximações vão além, de como queria Noll nas entrevistas, da relação do narrador com a escrita, com Londres ou sua faixa etária (os cinqüenta e poucos anos). Encontramos um personagem que se declara abstêmico, como Noll revela em suas entrevistas, e conta-nos de uma infância e juventude à beira das teclas de um piano, numa relação de rigor disciplinar da qual queria escapar. Além dos hábitos da caminhada como prática terapêutica e possibilidade de manutenção do físico.
Numa outra entrevista, em 2004, ele reafirma essa localização do biográfico, mas assinala para a possibilidade de que suas mentes sejam regidas pela mesma matriz, a inadequação humana. No início da trama, o narrador, ao falar de sua condição no Brasil, sua realidade precária enquanto escritor, sua constante solidão, o escritor recluso pelo mal estar que sente – aqui não se trata da solidão necessária ao gênio criativo – e prossegue deixando, para o leitor, uma sensação de inadequação tão intensa que a saída encontrada pelo narrador é o disfarce: Sim, disfarçara nas entrevistas ao lançar meu derradeiro livro, sim, vou passar uma temporada em Londres, representarei o Brasil, darei o melhor de mim – o quá-quá-quá surfava na minha traquéia sem poder sair, entende? (Romance Lorde).
Em uma entrevista exclusiva à revista Veja, em 2004, Noll desabafa sobre o período em que esteve internado numa clínica psiquiátrica na juventude e as conseqüências do tratamento insulínico utilizado, na época, pelos bons resultados sobre os pacientes com quadros de esquizofrenia. Por meio das altas doses de insulina, o paciente era induzido ao coma. Acometido por uma grave fobia social, Noll é submetido ao tratamento, o que trouxe um quadro colateral amnésico. Noll aponta que é a partir desse retraimento e da internação que ele entra em contato com a escrita: Para mim, a literatura está umbilicalmente ligada àquilo que se convencionou chamar de estado patológico. Em outra entrevista ele declara: Tenho dificuldades de viver com real. Eu sou um esquizóide. Isso foi-decorrência de minha opção insana pela escrita.
Em Lorde, seu personagem vê-se internado num hospital a receber medicações sem saber o motivo, a partir daí, percebe que sua já comprometida memória parece dissolver-se com mais rapidez.
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Podemos tomar a memória como uma das temáticas mais recorrentes nos discursos de Noll: não só a partir de seus desabafos sobre traumas, mas também enquanto material ficcionalizável a ser trabalhado pela imaginação. A criação, é claro, é um misto de imaginação e memória (Jornal do Brasil). Como essa mesma temática, presente em outras ficções do autor, como em João, protagonista e narrador de Berkeley em Bellagio, é representada na obra Lorde?
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A Memória
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Podemos tomar a memória como uma das temáticas mais recorrentes nos discursos de Noll: não só a partir de seus desabafos sobre traumas, mas também enquanto material ficcionalizável a ser trabalhado pela imaginação. A criação, é claro, é um misto de imaginação e memória (Jornal do Brasil). Como essa mesma temática, presente em outras ficções do autor, como em João, protagonista e narrador de Berkeley em Bellagio, é representada na obra Lorde?
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A Memória
Na narrativa de Noll, o narrador/escritor percebe o gradual esgotamento de sua memória. A partir daí, sua organização do mundo dá-se por imagens delirantes, vertigens febris. O leitor acompanha esse mal-estar, também em mal-estar: ao não conseguir se fixar na narrativa, já não confia no olhar desse narrador. O leitor acompanha as cenas e os pensamentos desconfiando, já não toma essa construção como uma possível leitura de um real, é o ouvinte desconfiado diante da fala de um esquizofrênico, de um bêbado. Aqui a imaginação já não colore os fatos, ela torna-os suspeitos, incômodos, como se o mundo, seus cenários e cenas fossem vistos a partir de um movimento caótico, alguém que observa sob a perspectiva de uma montanha-russa: as imagens se fazem e se desfazem ao mesmo tempo, nascimento e morte tendo a mesma imagem aberrante, absurda. A partir daí, não há possibilidade tranqüila de narrativa, de criação, de história, de vida ou de identidade.
Uma imaginação que não pode mais se situar pelos dados da memória, tornando-se uma imaginação perigosa, esquizofrênica, que não mais organiza e cria o real a partir de suas referências históricas íntimas, mas que se volta contra o indivíduo, pulverizando-o.
A dissolução do eu cosmopolita, que se desdobra em diversas possibilidades, também encontra esse outro caminho, a nadificação: essa impossibilidade pelo esgotamento da memória, pela impossibilidade de contar com a memória.
Uma imaginação que não pode mais se situar pelos dados da memória, tornando-se uma imaginação perigosa, esquizofrênica, que não mais organiza e cria o real a partir de suas referências históricas íntimas, mas que se volta contra o indivíduo, pulverizando-o.
A dissolução do eu cosmopolita, que se desdobra em diversas possibilidades, também encontra esse outro caminho, a nadificação: essa impossibilidade pelo esgotamento da memória, pela impossibilidade de contar com a memória.
O Ócio
Tal como a temática da memória, a preguiça, ou o ócio no discurso de Noll, apresenta uma força dupla, concentra a ambigüidade. Se a memória, somada à imaginação, poderia criar ou destruir mundos, este poder encontramos também na visão do escritor sobre o ócio.
Em suas falas, o ócio surge como espaço em potencial para a criação, porque convida à contemplação das cenas, às digressões da mente. Noll, em diversas entrevistas, afirma sua inclinação para o olhar contemplativo: toda a questão do vagabundo é muito forte pra mim. Toda questão da contemplação é muito forte no que escrevo - talvez por isso tenha agarrado com gana a questão da preguiça: é uma questão que aparece em todos os meu livros. A contemplação é a chave do que faço. Minhas personagens perambulam à procura de lugares em que eles possam, enfim contemplar (Revista A – 2000). Sou muito contemplativo e por causa disso sempre me senti muito acuado no mundo. Queria parar e ficar olhando, mas o olhar, para nossa época, é outro pecado. Olhar é não produzir, é ser paria (1990). Nesse ponto, Noll afirma colocar-se contra uma domesticação americana do tempo enquanto produção utilitária. Em suas falas, costumava caracterizar-se como um velho Hippie.
Em suas falas, o ócio surge como espaço em potencial para a criação, porque convida à contemplação das cenas, às digressões da mente. Noll, em diversas entrevistas, afirma sua inclinação para o olhar contemplativo: toda a questão do vagabundo é muito forte pra mim. Toda questão da contemplação é muito forte no que escrevo - talvez por isso tenha agarrado com gana a questão da preguiça: é uma questão que aparece em todos os meu livros. A contemplação é a chave do que faço. Minhas personagens perambulam à procura de lugares em que eles possam, enfim contemplar (Revista A – 2000). Sou muito contemplativo e por causa disso sempre me senti muito acuado no mundo. Queria parar e ficar olhando, mas o olhar, para nossa época, é outro pecado. Olhar é não produzir, é ser paria (1990). Nesse ponto, Noll afirma colocar-se contra uma domesticação americana do tempo enquanto produção utilitária. Em suas falas, costumava caracterizar-se como um velho Hippie.
Num outro viés, o ócio está fundamentado não mais contra um sistema de produção e lucros, mas como impossibilidade de ação, o que Noll chama de ansiedade descabelada.
No romance Lorde, encontramos o ócio, relacionando já ao próprio título da obra, como objeto de desejo do narrador. A possibilidade de estar em Londres, despreocupado com os trâmites cotidianos, sob o “pajeamento” de uma instituição, ainda que indefinida – indefinição que acarretará em gradativos processos de delírio persecutório (O sentimento de perseguição, a paranóia, é a alma dos meus livros 2004) – e na aceleração de seu desmoronamento.
No romance Lorde, encontramos o ócio, relacionando já ao próprio título da obra, como objeto de desejo do narrador. A possibilidade de estar em Londres, despreocupado com os trâmites cotidianos, sob o “pajeamento” de uma instituição, ainda que indefinida – indefinição que acarretará em gradativos processos de delírio persecutório (O sentimento de perseguição, a paranóia, é a alma dos meus livros 2004) – e na aceleração de seu desmoronamento.
O ócio é um dos fatores do seu abismo: seus pensamentos e caminhadas, enquanto oficinas ociosas que desconstroem seu espaço, tempo e identidade, ao invés de construir, de possibilitar histórias. Essa é a outra potencialidade do ócio: a destruição, o esfacelamento, loucura do estar suspenso – a de não poder recuar, nem avançar.
A memória que se esvai, a ponto do silêncio de quem não se lembra das palavras, soma-se ao ócio das indefinições, que leva o narrador a uma espécie de pânico delirante, idéia paranóica de perseguição, conduzindo-o ao abismo absurdo de não poder viver, nem morrer, percorrendo, em passos ligeiros e vertiginosos, o caminho para o nada, metamorfose gradativa em coisa alguma.
A memória que se esvai, a ponto do silêncio de quem não se lembra das palavras, soma-se ao ócio das indefinições, que leva o narrador a uma espécie de pânico delirante, idéia paranóica de perseguição, conduzindo-o ao abismo absurdo de não poder viver, nem morrer, percorrendo, em passos ligeiros e vertiginosos, o caminho para o nada, metamorfose gradativa em coisa alguma.
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Uma leitura
Desenvolvendo a questão da ficcionalização do biográfico, podemos promover uma leitura sobre algumas cenas da obra enquanto alegorização dessa temática:
Logo no início da trama, o narrador deseja construir uma outra identidade, busca que se desdobrará por toda obra numa tentativa vertiginosa. O narrador quer construir uma nova história, recriar-se. No entanto, após percorrer o apartamento, seu novo cenário, constata que ali não existe um espelho. Ver-se no espelho seria marcar o início dessa história a ser construída, dessa nova possibilidade de vida. Através do espelho, ele poderia atestar seu próprio nascimento para o que, agora, queria como vida. O desejo de ficcionalizar-se, de construir para si um novo enredo se potencializa através da maquiagem. O vazio do banheiro do museu possibilita o gesto: usar o cosmético. A transformação não pode ser testemunhada, não só pelo patético da cena em si, mas porque essa será aparência que ele quer possuir, provocar, nessa nova história a ser engendrada. Um rosto inédito para uma vida inédita. A maquiagem guarda em seus frascos o poder de ficcionalização. Através dela, uma série de mudanças poderão ser fomentadas. Ao buscar o espelho novamente, o narrador constata que já não está tão velho. A maquiagem é o elemento cênico que começa a delinear a personagem desejada. Numa fase laboratorial, é a maquiagem que impulsiona as engrenagens do corpo e da mente, ao modelar membros de “touro”. Diante do espelho, o narrador nomeia sua máscara, reconhece fisicamente a ficção que quer assumir: O Dândi, o Lorde. À maquiagem soma-se a tintura para os cabelos e a imagem totêmica do touro no museu.
As ruas de Londres surgem como lugar dessa construção física do Eu, a partir da sua função de mortificar o corpo, como num conjunto de rituais possibilitados pelas intempéries; caminhadas; desgastes físicos e mentais; e jejuns.
Também a prostituta cede seu colo e sua ladainha africana para esse corpo que precisa congregar diversos ritos de nascimento, o corpo do Dândi.
Contudo, no decorrer dessas descamações em busca de um novo rosto, o narrador suspeita que algo nele foi se corroendo. Houve o desgaste de uma figura irrecuperável. Uma mudança foi conseguida, o desmoronamento da identidade.
Apenas a nudez traz o corpo como força possível, corpo potencializado. Aqui, o ócio adquire sua força criativa e subversiva. É ele que acirra o desejo sexual capaz de produzir um sujeito afirmativo a forçar os eixos da ordem que o esfacelava, e esta parece ser a única produção possível (sexual). O narrador ejacula sobre as paredes do apartamento, sobre as estruturas de Londres, num embate contra a sujeição. Sua esterilidade andarilha, ociosa, amnésica, se travesti, sobre a cama, em amamentação seminal de sua Roma londrina. Este gesto é o único capaz de produzir algo, de fecundar seu novo espaço, sua nova história, porque nesse momento o personagem se vê potente e transgressor.
Já no final da narrativa, um outro gesto titânico aponta para a chance de engendrar outra história, talvez uma (história) possível, localizada em Liverpool. O roubo é o movimento perigoso, o outro gesto seminal que exige a coragem totêmica do touro como a por fim ao delírio esfacelador. Mas, já em Liverpool, embora essa nova máscara potente e sua história sejam vislumbradas, o narrador é visto adormecendo sobre o gramado de um cemitério e lá é deixado pelo autor.
Logo no início da trama, o narrador deseja construir uma outra identidade, busca que se desdobrará por toda obra numa tentativa vertiginosa. O narrador quer construir uma nova história, recriar-se. No entanto, após percorrer o apartamento, seu novo cenário, constata que ali não existe um espelho. Ver-se no espelho seria marcar o início dessa história a ser construída, dessa nova possibilidade de vida. Através do espelho, ele poderia atestar seu próprio nascimento para o que, agora, queria como vida. O desejo de ficcionalizar-se, de construir para si um novo enredo se potencializa através da maquiagem. O vazio do banheiro do museu possibilita o gesto: usar o cosmético. A transformação não pode ser testemunhada, não só pelo patético da cena em si, mas porque essa será aparência que ele quer possuir, provocar, nessa nova história a ser engendrada. Um rosto inédito para uma vida inédita. A maquiagem guarda em seus frascos o poder de ficcionalização. Através dela, uma série de mudanças poderão ser fomentadas. Ao buscar o espelho novamente, o narrador constata que já não está tão velho. A maquiagem é o elemento cênico que começa a delinear a personagem desejada. Numa fase laboratorial, é a maquiagem que impulsiona as engrenagens do corpo e da mente, ao modelar membros de “touro”. Diante do espelho, o narrador nomeia sua máscara, reconhece fisicamente a ficção que quer assumir: O Dândi, o Lorde. À maquiagem soma-se a tintura para os cabelos e a imagem totêmica do touro no museu.
As ruas de Londres surgem como lugar dessa construção física do Eu, a partir da sua função de mortificar o corpo, como num conjunto de rituais possibilitados pelas intempéries; caminhadas; desgastes físicos e mentais; e jejuns.
Também a prostituta cede seu colo e sua ladainha africana para esse corpo que precisa congregar diversos ritos de nascimento, o corpo do Dândi.
Contudo, no decorrer dessas descamações em busca de um novo rosto, o narrador suspeita que algo nele foi se corroendo. Houve o desgaste de uma figura irrecuperável. Uma mudança foi conseguida, o desmoronamento da identidade.
Apenas a nudez traz o corpo como força possível, corpo potencializado. Aqui, o ócio adquire sua força criativa e subversiva. É ele que acirra o desejo sexual capaz de produzir um sujeito afirmativo a forçar os eixos da ordem que o esfacelava, e esta parece ser a única produção possível (sexual). O narrador ejacula sobre as paredes do apartamento, sobre as estruturas de Londres, num embate contra a sujeição. Sua esterilidade andarilha, ociosa, amnésica, se travesti, sobre a cama, em amamentação seminal de sua Roma londrina. Este gesto é o único capaz de produzir algo, de fecundar seu novo espaço, sua nova história, porque nesse momento o personagem se vê potente e transgressor.
Já no final da narrativa, um outro gesto titânico aponta para a chance de engendrar outra história, talvez uma (história) possível, localizada em Liverpool. O roubo é o movimento perigoso, o outro gesto seminal que exige a coragem totêmica do touro como a por fim ao delírio esfacelador. Mas, já em Liverpool, embora essa nova máscara potente e sua história sejam vislumbradas, o narrador é visto adormecendo sobre o gramado de um cemitério e lá é deixado pelo autor.
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Referências:
NOLL, João Gilberto. Lorde.
SOUZA, Eneida. Nota sobre crítca biográfica. In. Crítica Cult.
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