Finquei o pé no chão, e o espinho entrou cada vez mais fundo. Estou febril. Corro sob os semáforos, meus olhos reverberam vermelhos. Sou uma mulher histérica, hipotética e hipnótica, eis o que sou. Morri antes de ter nascido, tive pai marinheiro e mãe que côa café como se tudo na vida fosse um rito. Justo nessa vida estranha e sem simetria, não há simetria desde o tornozelo ao ânimo, é só uma grande ferida que se abre como zíper. Os médicos cirurgiões calçam suas luvas de borracha e tocam no que não pode ser tocado. Estou menstruada, eis o que digo aos homens na noite que não é deles. Estou menstruada, repito ao açougueiro, e ele, compadecido, me serve de filé mignon , quando eu merecia mesmo a pior gordura. Posso ser a pior das pessoas quando estou menstruada. Dizer isso, “pior”, é puro deleite; e o padre nem se mortifica. Pior, pior, sangue fedido entre as pernas. Tudo é possível, e recebemos de volta um pouco da candura de Adão. Queria ter outro nome, já me perdi muito nesses acessos. Peco por gula, quero ser voraz como o pecado que nem Deus ousou ditar a Moisés. Quis ser Lilith: Por acessos bíblicos, fiz crisma e aceitei a hóstia, para negar tudo depois, como quem vomita.
Me cansei, descobri uma bala com esse nome, não quero nome de bala, não quero piadinhas. Outro dia, tive que sorrir para um rapaz no elevador de prédio empresarial; desses que se espalham pelas avenidas em meiose descompassada, e se abarrotam de advogados, dentistas, contadores, terapeutas; tive que sorrir porque não estava menstruada e ainda não sabia que era permitido mentir. Sorri. Quero meu nome Alice; mandaria cortar cabeças, tomaria chá com leões. Quero ser Alice e viver sem simetria onde ninguém finge ser reto. Lá eu não sorriria, porque teria um gato disposto a isso. Mas daria-lhe um nome, que esse de maravilha não me convence. Conheci a Disney World e aquela história de felicidade. Jamais fui tola, mas descobri a verdade no alto da montanha russa. A vida sacode, sacode e a gente vomita todo o caramelo. Felicidade não é isso, não sou tola, já disse! Que grande invenção essa montanha russa! No meio de tanta dissimulação, uma verdade que dá voltas; abstração quântica, eis o que é!
Queria ter me casado com um físico, porque só um físico pode entender de corpo. Esse negócio de anatomia só entende de dissecação. Só um físico sabe que corpo é matéria que vibra. Fui no ginecologista – e o rapaz falou uma gracinha no elevador, e eu não queria sorrir – o médico calçou as luvas, flexionei as pernas como frango trespassado por um espeto de ferro, assando numa padaria cheia de moscas. E eu ainda sorri, porque era preciso não morrer de câncer nos ovários. Me achariam louca se eu procurasse um físico. De outra vez eu faço. Nada de espéculos e luvas de borracha, nem Pour Elise no micro system, nem essas revistas que me ensinem a agradar. Procuro um físico, falo dessa preocupação de câncer nos ovários, abro para ele as pernas e me caso.
Ando lendo Schopenhauer, e descobri que esse negócio de romantismo é invencionice de um gênio, como o da lâmpada maravilhosa. Nunca fui tola, mas quase acreditei que isso existisse. Não assisto mais a Globo. Tem exatamente um ano que fui numa cartomante, é que essa decisão de não acreditar mais é recente, a cartomante me falou de um homem, coisa que não vale mencionar agora que sou outra. Meu aniversário mudei também, não quero por sorte nenhuma desses astros em oposição, tensão ou conjunção esse homem na minha vida! Sou do signo do ouriço. Sou Alice do ouriço que espeta e tenho um gato que sorri por mim.
A cartomante me falou pra ter cuidado com os ovários, e que sou filha de Exu. Logo Exu, que é quase pornográfico. Mas não importa, quero o primitivo. Se pudesse, voltava a grunhir e virava bicho. Pararia na descoberta do fogo, recusaria a roda. Evolução demasiada para acabar em padaria cheia de moscas verdes. Só quero fogo, para incendiar qualquer pré-histórico que tente converter os dinossauros. Serei a grande mãe e empunharei a tocha. E se tiver filho bonito demais, durmo com ele. Tranco Zeus no meu ovário e mudo esse mundo todo.
Me cansei, descobri uma bala com esse nome, não quero nome de bala, não quero piadinhas. Outro dia, tive que sorrir para um rapaz no elevador de prédio empresarial; desses que se espalham pelas avenidas em meiose descompassada, e se abarrotam de advogados, dentistas, contadores, terapeutas; tive que sorrir porque não estava menstruada e ainda não sabia que era permitido mentir. Sorri. Quero meu nome Alice; mandaria cortar cabeças, tomaria chá com leões. Quero ser Alice e viver sem simetria onde ninguém finge ser reto. Lá eu não sorriria, porque teria um gato disposto a isso. Mas daria-lhe um nome, que esse de maravilha não me convence. Conheci a Disney World e aquela história de felicidade. Jamais fui tola, mas descobri a verdade no alto da montanha russa. A vida sacode, sacode e a gente vomita todo o caramelo. Felicidade não é isso, não sou tola, já disse! Que grande invenção essa montanha russa! No meio de tanta dissimulação, uma verdade que dá voltas; abstração quântica, eis o que é!
Queria ter me casado com um físico, porque só um físico pode entender de corpo. Esse negócio de anatomia só entende de dissecação. Só um físico sabe que corpo é matéria que vibra. Fui no ginecologista – e o rapaz falou uma gracinha no elevador, e eu não queria sorrir – o médico calçou as luvas, flexionei as pernas como frango trespassado por um espeto de ferro, assando numa padaria cheia de moscas. E eu ainda sorri, porque era preciso não morrer de câncer nos ovários. Me achariam louca se eu procurasse um físico. De outra vez eu faço. Nada de espéculos e luvas de borracha, nem Pour Elise no micro system, nem essas revistas que me ensinem a agradar. Procuro um físico, falo dessa preocupação de câncer nos ovários, abro para ele as pernas e me caso.
Ando lendo Schopenhauer, e descobri que esse negócio de romantismo é invencionice de um gênio, como o da lâmpada maravilhosa. Nunca fui tola, mas quase acreditei que isso existisse. Não assisto mais a Globo. Tem exatamente um ano que fui numa cartomante, é que essa decisão de não acreditar mais é recente, a cartomante me falou de um homem, coisa que não vale mencionar agora que sou outra. Meu aniversário mudei também, não quero por sorte nenhuma desses astros em oposição, tensão ou conjunção esse homem na minha vida! Sou do signo do ouriço. Sou Alice do ouriço que espeta e tenho um gato que sorri por mim.
A cartomante me falou pra ter cuidado com os ovários, e que sou filha de Exu. Logo Exu, que é quase pornográfico. Mas não importa, quero o primitivo. Se pudesse, voltava a grunhir e virava bicho. Pararia na descoberta do fogo, recusaria a roda. Evolução demasiada para acabar em padaria cheia de moscas verdes. Só quero fogo, para incendiar qualquer pré-histórico que tente converter os dinossauros. Serei a grande mãe e empunharei a tocha. E se tiver filho bonito demais, durmo com ele. Tranco Zeus no meu ovário e mudo esse mundo todo.
Apenas um exercício despretensioso. Quando Alice caiu no buraco - Fabrícia Miranda
Pequeno conto escrito em 2001, no Instituto de Letras (UFBA), na disciplina Criação Literária I. Não lembro qual o tema sugerido para o exercício, mas era algo relacionado a um animal. Daí surgiu o nome do blog, apenas por esse motivo postei esse texto...
2 comentários:
Lembro de você lendo esse conto certa feita. Fiquei tão impressionada, por isso escrevi o poema Alice. Alice é você, Alice sou eu.
Te encontrei pelo blog da Renata Belmonte. Tudo muito belo, tudo muito intenso, Fulana Opereta.
Beijos
Bela escrita!
Toda Alice tem seus medos escondidos...
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