FAROL
Não consigo descrever a sensação de solidão que
senti quando compreendi que estava no meu lugar; era cedo demais para entender
o fardo da posse, ser dono de algo que não podia ser abandonado ou
desapropriado, que devia ser guardado para sempre. Janet Frame
É que a noite tocou a todos pelo caminho, 
como um homem toca o seu boi ao bebedouro,
e estão em suas casas guardados, 
depois de beber calmamente.
E não há um pensamento sequer 
sobre o que pode haver nesta hora em que falo:
As árvores escurecidas, como entes assombrados, 
perdem a nitidez, qual tio amado que, agora
morto, faz mover as cortinas, faz insegura 
toda a fiel casa da duração do dia,
nosso coração em sobressalto, atentos aos retratos 
íntimos sobre os pianos –  qualquer sussurro 
de um nome, uma tecla em desafino –, sorrindo, 
os mortos e os vivos.  
Nada se move, é noite ainda.
Pois chega essa hora em que os objetos 
perdem a comunhão conosco.
A casa é o que nos sobra, no escuro, por dentro,
trancados, quase pacíficos, esperando a hora 
em que nossos irmãos respeitam o silêncio,
e eis que chega o sono como a insinuação da sorte: 
Protegei-vos.  
Do outro lado da rua, uma casa do lado de fora
é inteira amaldiçoada, se nela 
promiscuem-se as silhuetas das grades, 
os pilares carcomidos,
as gaiolinhas de pássaros dormindo,
as trepadeiras em sombras 
numa tela de musgos e fachadas.
Mas guardada está a vizinhança bendita, 
e benditos os seus silêncios,
e os copos que não deixam cair ao chão,
os móveis que não arrastam, 
os chinelos de pantufas no corredor do banheiro
e as dores contidas, sem um gemido sequer,
e os irmãos encolhidos sobre os abdomens. 
Todos trocam cuidados.
É que para todos chega a hora em que é impossível 
pensar a rua enegrecida,
para além das portas e janelas e vigilantes...
As praças desertas petrificadas, o quebra-mar infinito
como uma fortificação de nossa extensa península, e
a ansiedade de que padecem as avenidas vazias,
porque também numa guerra 
os soldados dormem, invisíveis nas covas, entre pesadelos.
Estou agora a me mover pelos canteiros centrais até alcançar a orla.
Passo praças e o quebra-mar infinito nesse meu sonho vívido e só,
e o mar noturno que se recusa,
como a tudo ao que o olhar se esforça, 
mas a nada distingue. Um navio mercante, uma baleia, o continente.
Fantasmagorias que impregnam a vida 
e que são nossas – como um homem deixa 
seu último hálito no cômodo em que se senta 
com sua última consciência, gravados, ambos, 
ali para sempre.
A noite não existe. Somos nós, massa indistinta.
E, ao final, os postes acesos guardam a promessa 
de que tudo está ali, exatamente e
como sempre, passado o grande perigo que anulamos.
E assim, reacomodando nosso olho e nossa posse, 
descobrimos, na manhã seguinte,
alguém a andar com nossas ideias de ontem,
e alguma coisa de um hálito, de um cômodo, ou marinheiro, 
um traço seu antigo – de vida ou sentimento,
doendo na nossa alma e sem ter nome –,
que se mistifica na história que terá o dia.
Outubro, 2011
Ismael Nery - sem título
 

 

 

 
 
 
 
 
 
 

 
 
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