quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A INSÔNIA DE FEDRA - poema 03; traduções 02

A INSÔNIA DE FEDRA

- (...); conheço minha infidelidade, Enone, e não sou 
dessas mulheres impudentes que tiram do crime uma espécie
 de máscara que põe em seu rosto calma e serenidade. 
Conheço minhas loucuras, não esqueço nenhuma. 
Já vejo estes muros e estas colunas adquirindo
 vozes para me acusar. (Racine)

Retalho-me em cortes profundos.
Não há nomes que me revelem.
Já me deitei sendo muitas
e eis que acordo e sou apenas Ele.
Coleciono pedras que atiro contra o espelho.

O espelho de dedos em riste
e unhas sujas de corrupções e fluidos de amores torpes.
Filete de vidro agudo fincado por baixo da pele.
Já me escarnei com precisões cirúrgicas
em meio à escuridão e ao sono que não é meu.
Retirado o espinho de vidro,
saberão todos eles como me acostumei aos suicídios.
Abafo o grito que é de todos os cortes.
Peço silêncio à violência que Ele me traz.

Teseu das Guerras dorme
Entre os lençóis frios.


Alexandre Cabanel - Fedra (detalhe)- 1880


  Alexandre Cabanel - Fedra (detalhe) - 1880

El insomnio de Fedra
- (...); conozco mi infidelidad, Enone, y no soy de esas mujeres impúdicas que sacan del crimen una especie de máscara que pone en su rostro calma y serenidad. Conozco mis locuras, no olvido ninguna. Ya veo estos muros y estas columnas adquiriendo voces para acusarme. (Racine)

Me cerceno en cortes profundos.
No hay nombres que me revelen.
Ya me acosté siendo muchas
y he aquí que despierto y soy apenas Él.

Colecciono piedras que arrojo contra el espejo.
El espejo de dedos en ristre
y uñas sucias de corrupciones y fluidos de amores torpes.
Filete de vidrio agudo enquistado bajo la piel.
Ya me descarné con precisión quirúrgica
en medio de la oscuridad y el sueño que no es mío.
Retirada la espina de vidrio,
sabrán todos ellos como me acostumbré a suicidios.

Ahogo el grito de todas las heridas.
Pido silencio a la violencia que Él me trae.
Teseo de las Guerras duerme
Entre las sábanas frías.

Poema: Fabrícia Miranda
Tradução do português: john galán

Mas Fulana será gente? Estará somente em ópera?

Ray Caesar - FOD



A poesia de Fabrícia Miranda vem revelar uma poética feminina eivada de sangue e suor.
Em Fabricia Miranda, há um estado acima da loucura e da razão, algo que só quem está antenada com anjos que tocam trombetas e sopram nos ouvidos versos líricos pode dar o ar da graça (...)

Seus olhos são como esmeraldas e de tão linda, já é um poema que Deus nos legou. Adoro a poética e a pessoa de Fabricia Miranda e como amo! 


Miguel Carneiro 

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(...) E há ainda o caso da Fabrícia Miranda, também vencedora do Braskem, de 2002. Quem quiser ler boa poesia que vá ao blog da moça. 

A poesia de Fabrícia Miranda é "curta e grossa", mesmo quando lírica. Há sempre destroços no asfalto, mas uma esperança de que chegue logo o resgate - que é sempre ela mesma, a poeta. Tudo o que ela escreve acerta nossa veia. Mas não se trata de poesia meramente "violenta". A poesia de Fabrícia é muito bem escrita, revela forte conhecimento do idioma e seus melhores recursos, além de evidente maturidade para com seus sentimentos e a forma menos óbvia de manifestá-los. Tenho estado muito cansado com o que chamo de "poemas sensíveis demais", feito por mulheres que falam de uma borboleta, da brisa, do ocaso, dos passos da bailarina etc... São sempre poemas anódinos, pálidos, anêmicos, aquele tipo de escrita que espera do cotidiano de bandeira toda a sua possível epifania... Ledo e ivo engano. A andorinha, o porquinho-da-índia e as pernas de Teresa jamais me disseram nada, e quando "atualizados" por essas mulheres, dizem o oposto do nada: um tudo niilista...

Henrique Wagner

Comentário postado no blog do Herculano Neto

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Inegavelmente, um bonito poema, fazendo lembrar no andamento lírico, mas não na construção, nem a tônica sensual, o famoso "Leda e o Cisne" ("Leda and the swan"), do irlandês J. B. Yeates, do qual há uma bela tradução para o português de José Paulo Paes.

Florisvaldo Mattos, comentário sobre o poema "O cisne"

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Meus votos de que ela continue a descobrir os mistérios da poesia! 


Conceição Paranhos


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Cada palavra tem seu valor, sua força, seu uso devido... só quem sabe fazer poesia pode se dar a tal luxo... e Fabrícia pode...

Silvério Duque


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A programação da Bienal (Bahia-2009) está muito mais variada e atraente do que na edição anterior. A seleção dos poetas e cordelistas que participam de recitais (em três sessões diárias, às 18h, 19h10 e 20h20), organizada por José Inácio Vieira de Melo, tem sido um painel significativo da produção poética baiana atual, com representantes dos mais diversos estilos, dicções, tradições, linguagens (e níveis de qualidade também). Do que até agora assisti, o que mais apreciei foi a segurança com que Fabrícia Miranda apresentou seu trabalho, atendo-se à palavra e ao texto e evitando o que poderia facilmente descambar para arroubos emotivos.

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Poesia com forte ânsia, loucura, beleza, segredos do universo feminino, maravilhosa..

Luciano Fraga 

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Uma vez Pablo Sales me deu um livro de poemas da Fabrícia Miranda, e li de uma vez só. Maravilhosa poeta. 

Nelson Magalhães

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... Eis Fabricia Miranda, menina com um amarelo esverdeado onde Oxum se percebe pelas palavras e pelo cheiro. Estes, símbolos da menina e da poeta. Delicada, sensível, capaz riscar as mãos com sua própria espada, só para seguir em defesa de seu destino. E como o destino de uma poeta é um encanto, Ora ye ye; que a loucura sempre ritualize nossa criação, porque a nossa loucura é viva.

João de Moraes Filho 

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Fabrícia, minha prinspa-poeta, que os loucos continuem a lavar teus versos com suas lágrimas e a lamber tua pele para que ela continue assim: a mais fina porcelana da China. Ontem, eu estava na Caatinga, literalmente atravessando a Caatinga, debaixo de chuva, e a minha pele sendo lambida pela língua áspera das urtigas, recebendo o anestésico dos espinhos de quiabento, na companhia de Fafafa, o Priquito e de Garanço, o sabiá  Mas o meu pensamento era uma cimitarra a deslizar pela geografia da poeta dos espelhos e seus ritos. O meu pensamento, os meus sentidos e o meu sentimento eram - e agora são - para ti - imbuídos do mais forte desejo de Luz, de Poesia, de Paz. É isso, eu desejo esse monte de coisas, dessa forma desordenada,atabalhoada e sincera.

José Inácio Vieira de Melo 

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

POEMA DE MULHER EM PERÍODO FÉRTIL - Poema 02

Ismael Nery - cortesã


POEMA DE MULHER EM PERÍODO FÉRTIL

Para ele

Vinde a mim os que têm fome
Que meu corpo é todo banquete.
Venha a legião dos desesperados
Que eu sou toda santa e tenho o colo das consolações.
Os miseráveis,
Os que cobiçam o que é do próximo,
Porque caminha com vestidos transparentes
E profundos decotes.
Eu vos abro meus braços de pomba mestiça,
Filha da rapina e de anjo acrobata.
Eu que sou toda pura,
Purificada para a santa ceia,
Para a insinuação das colônias
Sobre os pés dos mendigos, aleijados,
Profetas de pouca sorte.
Vinde a mim os famintos
Que eu toda me contorço e me ouriço
Só de pensar no homem que quero
E que não posso.


(Poema inédito, Classificado entre os 20 melhores poemas, XI Concurso Nacional de Poesia Francisco Igreja, promovido pela Associação Profissional de Poetas do Estado do Rio de Janeiro – APPERJ, 2006)

Vertumnus e Pomona 1760 - François Boucher

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

POÈME DE FEMME EN PÉRIODE FERTILE - Traduções 01

POÈME DE FEMME EN PÉRIODE FERTILE

Venez à moi vous qui avez faim
Car tout mon corps est festin.
Que vienne la légion des désespérés
Car je suis toute sanctifiée et qu'il est mien le giron des consolations.
Les misérables,
Ceux qui convoitent le bien de leur prochain,
Parce qu'il va en robes transparentes
Aux décolletés profonds.
Je vous ouvre mes bras de colombe métisse,
Fille de la rapine et d'un ange acrobate.
Moi qui suis toute pure,
Purifiée pour la sainte cène,
Pour l'insinuation des colonies
Sur les pieds des mendiants, estropiés,
Prophètes de peu de chance.
Venez à moi les affamés
Car tout entière je me tortille et me déchaîne
Rien que de penser à l'homme que je veux
Et que je ne peux pas.

frabrícia miranda
inédit
traduit du portugais (Brésil) par pedro vianna
© Fabrícia Miranda et Pedro Vianna pour la traduction en français


Ismael Nery, Mulher sentada

Poemas de mujer en periodo fértil
A él

Vengan a mí los que tienen hambre
Que mi cuerpo es todo banquete.
Venga la legión de los desesperados
Que soy toda santa y ofrezco el regazo de los consuelos.
Los miserables,
Los que codician lo que es del prójimo,
Porque camina con vestidos transparentes
Y profundos escotes.
Yo les abro mis brazos de paloma mestiza,
Hija de ave rapaz y de ángel acróbata.
Yo que soy toda pureza,
Purificada para la santa cena,
Para sugestión de las colonias
Sobre los pies de los mendigos, lisiados,
Profetas de poca suerte.
Vengan a mí los hambrientos
Que yo me retuerzo toda y me erizo

De sólo pensar en el hombre que quiero Y que no puedo.

Tradução: john galán - escritor colombiano

QUANDO ALICE CAIU NO BURACO - prosa e presepada 01




Finquei o pé no chão, e o espinho entrou cada vez mais fundo. Estou febril. Corro sob os semáforos, meus olhos reverberam vermelhos. Sou uma mulher histérica, hipotética e hipnótica, eis o que sou. Morri antes de ter nascido, tive pai marinheiro e mãe que côa café como se tudo na vida fosse um rito. Justo nessa vida estranha e sem simetria, não há simetria desde o tornozelo ao ânimo, é só uma grande ferida que se abre como zíper. Os médicos cirurgiões calçam suas luvas de borracha e tocam no que não pode ser tocado. Estou menstruada, eis o que digo aos homens na noite que não é deles. Estou menstruada, repito ao açougueiro, e ele, compadecido, me serve de filé mignon , quando eu merecia mesmo a pior gordura. Posso ser a pior das pessoas quando estou menstruada. Dizer isso, “pior”, é puro deleite; e o padre nem se mortifica. Pior, pior, sangue fedido entre as pernas. Tudo é possível, e recebemos de volta um pouco da candura de Adão. Queria ter outro nome, já me perdi muito nesses acessos. Peco por gula, quero ser voraz como o pecado que nem Deus ousou ditar a Moisés. Quis ser Lilith: Por acessos bíblicos, fiz crisma e aceitei a hóstia, para negar tudo depois, como quem vomita.
Me cansei, descobri uma bala com esse nome, não quero nome de bala, não quero piadinhas. Outro dia, tive que sorrir para um rapaz no elevador de prédio empresarial; desses que se espalham pelas avenidas em meiose descompassada, e se abarrotam de advogados, dentistas, contadores, terapeutas; tive que sorrir porque não estava menstruada e ainda não sabia que era permitido mentir. Sorri. Quero meu nome Alice; mandaria cortar cabeças, tomaria chá com leões. Quero ser Alice e viver sem simetria onde ninguém finge ser reto. Lá eu não sorriria, porque teria um gato disposto a isso. Mas daria-lhe um nome, que esse de maravilha não me convence. Conheci a Disney World e aquela história de felicidade. Jamais fui tola, mas descobri a verdade no alto da montanha russa. A vida sacode, sacode e a gente vomita todo o caramelo. Felicidade não é isso, não sou tola, já disse! Que grande invenção essa montanha russa! No meio de tanta dissimulação, uma verdade que dá voltas; abstração quântica, eis o que é!
Queria ter me casado com um físico, porque só um físico pode entender de corpo. Esse negócio de anatomia só entende de dissecação. Só um físico sabe que corpo é matéria que vibra. Fui no ginecologista – e o rapaz falou uma gracinha no elevador, e eu não queria sorrir – o médico calçou as luvas, flexionei as pernas como frango trespassado por um espeto de ferro, assando numa padaria cheia de moscas. E eu ainda sorri, porque era preciso não morrer de câncer nos ovários. Me achariam louca se eu procurasse um físico. De outra vez eu faço. Nada de espéculos e luvas de borracha, nem Pour Elise no micro system, nem essas revistas que me ensinem a agradar. Procuro um físico, falo dessa preocupação de câncer nos ovários, abro para ele as pernas e me caso.
Ando lendo Schopenhauer, e descobri que esse negócio de romantismo é invencionice de um gênio, como o da lâmpada maravilhosa. Nunca fui tola, mas quase acreditei que isso existisse. Não assisto mais a Globo. Tem exatamente um ano que fui numa cartomante, é que essa decisão de não acreditar mais é recente, a cartomante me falou de um homem, coisa que não vale mencionar agora que sou outra. Meu aniversário mudei também, não quero por sorte nenhuma desses astros em oposição, tensão ou conjunção esse homem na minha vida! Sou do signo do ouriço. Sou Alice do ouriço que espeta e tenho um gato que sorri por mim.
A cartomante me falou pra ter cuidado com os ovários, e que sou filha de Exu. Logo Exu, que é quase pornográfico. Mas não importa, quero o primitivo. Se pudesse, voltava a grunhir e virava bicho. Pararia na descoberta do fogo, recusaria a roda. Evolução demasiada para acabar em padaria cheia de moscas verdes. Só quero fogo, para incendiar qualquer pré-histórico que tente converter os dinossauros. Serei a grande mãe e empunharei a tocha. E se tiver filho bonito demais, durmo com ele. Tranco Zeus no meu ovário e mudo esse mundo todo.

Apenas um exercício despretensioso. Quando Alice caiu no buraco - Fabrícia Miranda
Pequeno conto escrito em 2001, no Instituto de Letras (UFBA), na disciplina Criação Literária I. Não lembro qual o tema sugerido para o exercício, mas era algo relacionado a um animal. Daí surgiu o nome do blog, apenas por esse motivo postei esse texto...

LEITURAS, INTERPRETAÇÕES E CRÍTICA 01 (Noll)


A questão das fronteiras entre o biográfico e o ficcional em Lorde, de João Gilberto Noll - 
apontamentos para aula da disciplina A narrativa literária no Brasil




A primeira questão observada sobre esse tema em Noll é a complexidade das relações estabelecidas entre o real e o ficcional, aquilo que aponta Eneida Souza no texto sobre crítica biográfica: nesta relação, os embrincamentos são sutis, porque não são fatos visíveis a serem apenas localizados, mas, como Souza coloca, são pontes metafóricas – é uma representação do material vivido.
Ao ler a obra de Noll, como os romances Berkeley em Bellagio e Lorde – em que as personagens narradoras são também escritores convidados a criar em terras estrangeiras (Berkeley, Itália, Londres), como o próprio Noll –, o leitor não consegue determinar com facilidade, onde termina o biográfico e onde começa o ficcional, tende a tomar a obra como biográfica, mas essa atitude encontra dificuldades no decorrer da trama, por não saber lidar com o biográfico enquanto graus de inserção do sujeito na escrita, usando uma expressão de Eneida Souza. Ela afirma que essa reelaboração imaginária da experiência estabelece associações e choques ao emergirem no texto.
Assim, a questão biográfica em Noll, os temas recorrentes em sua fala cotidianizada, em depoimentos e entrevistas, emergem no texto ficcional, ora produzindo contigüidades, ora rupturas bruscas.

Esta é mesmo uma questão complexa em Noll, seu próprio discurso, sobre sua obra, demonstra. A partir da leitura de suas entrevistas (disponíveis em sites da internet), notamos que, diversas vezes, Noll sente necessidade de pontuar que sua escrita não é biográfica. Contudo, no decorrer das perguntas articuladas pelos entrevistadores, que localizam algumas falas na obra ficcional, ele parece amenizar a afirmativa ao dizer que a literatura é biográfica no sentido que é “existencialista”, um trabalho a partir do vivenciado, marca de um olhar sobre as coisas.
Só a partir do romance Berkeley em Bellagio, a relação do autor com o biográfico muda, o que pode ser observado através de uma análise diacrônica das entrevistas. Como foi dito, há um narrador-escritor que conta a história, situado nesses dois cenários hospedeiros, em que também esteve Noll.
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É seguramente o meu livro mais pessoal. Não apenas porque ele mostra um escritor gaúcho dando aulas de Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia em Berkeley, e depois escrevendo seu romance numa fundação para escritores em Bellagio, norte da Itália, estágios que efetivamente vivi enquanto cidadão e autor; mas principalmente porque pela primeira vez dou um nome para um protagonista, e este nome é João, um homem em certos momentos decididamente autobiográfico, embora continuamente entre um desvelar-se e, na mesma medida, um ocultar-se - travestido então com a máscara ficcional. É um jogo. E a consciência do jogo me alegra, me deixa quase eufórico. (2002 – Jornal Estado de Minas)
Quando pus os pés em Berkeley, na Califórnia, senti de imediato que escreveria um romance a partir dessa experiência. Por quê? Porque o não-familiar, o estranhamento, enfim, acende-me o desejo da ficção. (Jornal do Brasil)
Mas, com a maturidade, já não procuro em Marte o que posso mostrar com o aval do meu próprio paladar, olfato e, sobretudo, tato. Sim, literatura é uma fricção com o real, mas para nele tentar novas aproximações, novas produções de sentido. (Estado de São Paulo, 2003)
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Sobre o romance Lorde, Noll diz, em entrevista para a jornalista e escritora baiana Kátia Borges, publicada no Jornal ATarde, que o biográfico encontra-se limitado ao início do livro, situado no espaço do aeroporto. Mas, em toda a narrativa, elementos da história de Noll são construídos como marcas do seu personagem-narrador. Essas aproximações vão além, de como queria Noll nas entrevistas, da relação do narrador com a escrita, com Londres ou sua faixa etária (os cinqüenta e poucos anos). Encontramos um personagem que se declara abstêmico, como Noll revela em suas entrevistas, e conta-nos de uma infância e juventude à beira das teclas de um piano, numa relação de rigor disciplinar da qual queria escapar. Além dos hábitos da caminhada como prática terapêutica e possibilidade de manutenção do físico.

Numa outra entrevista, em 2004, ele reafirma essa localização do biográfico, mas assinala para a possibilidade de que suas mentes sejam regidas pela mesma matriz, a inadequação humana. No início da trama, o narrador, ao falar de sua condição no Brasil, sua realidade precária enquanto escritor, sua constante solidão, o escritor recluso pelo mal estar que sente – aqui não se trata da solidão necessária ao gênio criativo – e prossegue deixando, para o leitor, uma sensação de inadequação tão intensa que a saída encontrada pelo narrador é o disfarce: Sim, disfarçara nas entrevistas ao lançar meu derradeiro livro, sim, vou passar uma temporada em Londres, representarei o Brasil, darei o melhor de mim – o quá-quá-quá surfava na minha traquéia sem poder sair, entende? (Romance Lorde).

Em uma entrevista exclusiva à revista Veja, em 2004, Noll desabafa sobre o período em que esteve internado numa clínica psiquiátrica na juventude e as conseqüências do tratamento insulínico utilizado, na época, pelos bons resultados sobre os pacientes com quadros de esquizofrenia. Por meio das altas doses de insulina, o paciente era induzido ao coma. Acometido por uma grave fobia social, Noll é submetido ao tratamento, o que trouxe um quadro colateral amnésico. Noll aponta que é a partir desse retraimento e da internação que ele entra em contato com a escrita: Para mim, a literatura está umbilicalmente ligada àquilo que se convencionou chamar de estado patológico. Em outra entrevista ele declara: Tenho dificuldades de viver com real. Eu sou um esquizóide. Isso foi-decorrência de minha opção insana pela escrita.
Em Lorde, seu personagem vê-se internado num hospital a receber medicações sem saber o motivo, a partir daí, percebe que sua já comprometida memória parece dissolver-se com mais rapidez.
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Podemos tomar a memória como uma das temáticas mais recorrentes nos discursos de Noll: não só a partir de seus desabafos sobre traumas, mas também enquanto material ficcionalizável a ser trabalhado pela imaginação. A criação, é claro, é um misto de imaginação e memória (Jornal do Brasil). Como essa mesma temática, presente em outras ficções do autor, como em João, protagonista e narrador de Berkeley em Bellagio, é representada na obra Lorde?
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A Memória
Na narrativa de Noll, o narrador/escritor percebe o gradual esgotamento de sua memória. A partir daí, sua organização do mundo dá-se por imagens delirantes, vertigens febris. O leitor acompanha esse mal-estar, também em mal-estar: ao não conseguir se fixar na narrativa, já não confia no olhar desse narrador. O leitor acompanha as cenas e os pensamentos desconfiando, já não toma essa construção como uma possível leitura de um real, é o ouvinte desconfiado diante da fala de um esquizofrênico, de um bêbado. Aqui a imaginação já não colore os fatos, ela torna-os suspeitos, incômodos, como se o mundo, seus cenários e cenas fossem vistos a partir de um movimento caótico, alguém que observa sob a perspectiva de uma montanha-russa: as imagens se fazem e se desfazem ao mesmo tempo, nascimento e morte tendo a mesma imagem aberrante, absurda. A partir daí, não há possibilidade tranqüila de narrativa, de criação, de história, de vida ou de identidade.
Uma imaginação que não pode mais se situar pelos dados da memória, tornando-se uma imaginação perigosa, esquizofrênica, que não mais organiza e cria o real a partir de suas referências históricas íntimas, mas que se volta contra o indivíduo, pulverizando-o.
A dissolução do eu cosmopolita, que se desdobra em diversas possibilidades, também encontra esse outro caminho, a nadificação: essa impossibilidade pelo esgotamento da memória, pela impossibilidade de contar com a memória.

O Ócio
Tal como a temática da memória, a preguiça, ou o ócio no discurso de Noll, apresenta uma força dupla, concentra a ambigüidade. Se a memória, somada à imaginação, poderia criar ou destruir mundos, este poder encontramos também na visão do escritor sobre o ócio.
Em suas falas, o ócio surge como espaço em potencial para a criação, porque convida à contemplação das cenas, às digressões da mente. Noll, em diversas entrevistas, afirma sua inclinação para o olhar contemplativo: toda a questão do vagabundo é muito forte pra mim. Toda questão da contemplação é muito forte no que escrevo - talvez por isso tenha agarrado com gana a questão da preguiça: é uma questão que aparece em todos os meu livros. A contemplação é a chave do que faço. Minhas personagens perambulam à procura de lugares em que eles possam, enfim contemplar (Revista A – 2000). Sou muito contemplativo e por causa disso sempre me senti muito acuado no mundo. Queria parar e ficar olhando, mas o olhar, para nossa época, é outro pecado. Olhar é não produzir, é ser paria (1990). Nesse ponto, Noll afirma colocar-se contra uma domesticação americana do tempo enquanto produção utilitária. Em suas falas, costumava caracterizar-se como um velho Hippie.
Num outro viés, o ócio está fundamentado não mais contra um sistema de produção e lucros, mas como impossibilidade de ação, o que Noll chama de ansiedade descabelada.

No romance Lorde, encontramos o ócio, relacionando já ao próprio título da obra, como objeto de desejo do narrador. A possibilidade de estar em Londres, despreocupado com os trâmites cotidianos, sob o “pajeamento” de uma instituição, ainda que indefinida – indefinição que acarretará em gradativos processos de delírio persecutório (O sentimento de perseguição, a paranóia, é a alma dos meus livros 2004) – e na aceleração de seu desmoronamento.
O ócio é um dos fatores do seu abismo: seus pensamentos e caminhadas, enquanto oficinas ociosas que desconstroem seu espaço, tempo e identidade, ao invés de construir, de possibilitar histórias. Essa é a outra potencialidade do ócio: a destruição, o esfacelamento, loucura do estar suspenso – a de não poder recuar, nem avançar.
A memória que se esvai, a ponto do silêncio de quem não se lembra das palavras, soma-se ao ócio das indefinições, que leva o narrador a uma espécie de pânico delirante, idéia paranóica de perseguição, conduzindo-o ao abismo absurdo de não poder viver, nem morrer, percorrendo, em passos ligeiros e vertiginosos, o caminho para o nada, metamorfose gradativa em coisa alguma.
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Uma leitura
Desenvolvendo a questão da ficcionalização do biográfico, podemos promover uma leitura sobre algumas cenas da obra enquanto alegorização dessa temática:
Logo no início da trama, o narrador deseja construir uma outra identidade, busca que se desdobrará por toda obra numa tentativa vertiginosa. O narrador quer construir uma nova história, recriar-se. No entanto, após percorrer o apartamento, seu novo cenário, constata que ali não existe um espelho. Ver-se no espelho seria marcar o início dessa história a ser construída, dessa nova possibilidade de vida. Através do espelho, ele poderia atestar seu próprio nascimento para o que, agora, queria como vida. O desejo de ficcionalizar-se, de construir para si um novo enredo se potencializa através da maquiagem. O vazio do banheiro do museu possibilita o gesto: usar o cosmético. A transformação não pode ser testemunhada, não só pelo patético da cena em si, mas porque essa será aparência que ele quer possuir, provocar, nessa nova história a ser engendrada. Um rosto inédito para uma vida inédita. A maquiagem guarda em seus frascos o poder de ficcionalização. Através dela, uma série de mudanças poderão ser fomentadas. Ao buscar o espelho novamente, o narrador constata que já não está tão velho. A maquiagem é o elemento cênico que começa a delinear a personagem desejada. Numa fase laboratorial, é a maquiagem que impulsiona as engrenagens do corpo e da mente, ao modelar membros de “touro”. Diante do espelho, o narrador nomeia sua máscara, reconhece fisicamente a ficção que quer assumir: O Dândi, o Lorde. À maquiagem soma-se a tintura para os cabelos e a imagem totêmica do touro no museu.
As ruas de Londres surgem como lugar dessa construção física do Eu, a partir da sua função de mortificar o corpo, como num conjunto de rituais possibilitados pelas intempéries; caminhadas; desgastes físicos e mentais; e jejuns.
Também a prostituta cede seu colo e sua ladainha africana para esse corpo que precisa congregar diversos ritos de nascimento, o corpo do Dândi.
Contudo, no decorrer dessas descamações em busca de um novo rosto, o narrador suspeita que algo nele foi se corroendo. Houve o desgaste de uma figura irrecuperável. Uma mudança foi conseguida, o desmoronamento da identidade.
Apenas a nudez traz o corpo como força possível, corpo potencializado. Aqui, o ócio adquire sua força criativa e subversiva. É ele que acirra o desejo sexual capaz de produzir um sujeito afirmativo a forçar os eixos da ordem que o esfacelava, e esta parece ser a única produção possível (sexual). O narrador ejacula sobre as paredes do apartamento, sobre as estruturas de Londres, num embate contra a sujeição. Sua esterilidade andarilha, ociosa, amnésica, se travesti, sobre a cama, em amamentação seminal de sua Roma londrina. Este gesto é o único capaz de produzir algo, de fecundar seu novo espaço, sua nova história, porque nesse momento o personagem se vê potente e transgressor.
Já no final da narrativa, um outro gesto titânico aponta para a chance de engendrar outra história, talvez uma (história) possível, localizada em Liverpool. O roubo é o movimento perigoso, o outro gesto seminal que exige a coragem totêmica do touro como a por fim ao delírio esfacelador. Mas, já em Liverpool, embora essa nova máscara potente e sua história sejam vislumbradas, o narrador é visto adormecendo sobre o gramado de um cemitério e lá é deixado pelo autor.


Apontamentos para aula - A narrativa literária no Brasil
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Referências:
NOLL, João Gilberto. Lorde.
SOUZA, Eneida. Nota sobre crítca biográfica. In. Crítica Cult.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

ESTATUÁRIAS - poema 01

Gustav Klimt - Serpentes aquáticas

ESTATUÁRIAS

Parce que vous êtes la femme,

l'Eden de l'ancienne tendresse oubliée (Paul Claudel)


Ai de nós, mulheres feias!
Ai de nós, mulheres tortas! (Rita Santana)

à Rita Santana, Vanessa Buffone, 

Adelice Souza, Renata Belmonte,

Atrás de mim,
Camille grita por seus abortos.
Tento juntar minhas três faces
De modo que eu pareça ainda mais desumana
Criatura abissal de profundos oceanos
Peixes esquizóides pinçando as córneas de todos os náufragos.
Quero a confusão para os que me olham
Porque são muitos os que não me sabem.
Em minha cabeça majestosa de demoníaca trindade
Camille ainda grita, de cócoras sobre a noite,
Erguendo a mim suas mãos metalizadas.
Adiante, além da noite que se desenrola
No destrançar das tramas da minha cabeleira de possessa
De onde despencam os sonhos e os pesadelos,
Aquela dos olhos grandes toma um conhaque barato;
Como saído de contos de fazer dormir,
Um leão cochila acorrentado a um de seus punhos
Em seu pêlo de poeira e ouro, marcas de pernas fêmeas
Um arreio de fios de seda pende,
Como um adorno singelo,
Do largo dorso de besta.
Avanço na lamacenta escuridão do entre-sono
Com o meu rosto distorcido pelo alinhavar das agulhas.
Há um baque oco contra as pedras,
Sei que são ossos
Uma cabeça de pai
Coagulando silenciosas ternuras.
Fazendo dobras em papéis
Recorto homens de mãos dadas,
Numa ciranda de infinitos herdeiros das coisas profundas
E ofereço à mulher que, ao fundo de muitas salas,
Balbucia premonições onomatopaicas.
No centro de tudo, no centro da noite,
Treze cavalos suportam seus labirintos de Creta.
O que fora feito de Camille? Pergunto
Articulando em cadência bizarra minhas três bocas.
De dentro do manicômio, espasmos de eletrochoques
Um coro de mulheres loucas, nuas, usadas,
Repete em convulsões as letras trágicas de sua loucura:
- Ai de nós, mulheres tortas...


Camille Claudel - 1930




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