 
 
Ismael Nery
O PRESÉPIO
(os presentes – a estrebaria – a estrela movente)
I
O morto na paisagem está diante do sol.
Ainda há pouco, seus recentes, honestos amigos vieram de 
[visita
[visita
Trazendo os últimos acontecimentos esportivos
E as saudações sinuosas das namoradas que tivera e que 
[ainda eram quase presentes.
[ainda eram quase presentes.
E foram tão pouco, mas estavam sempre sorrindo e joviais entre 
[os cabelos.
[os cabelos.
Recebera também a irmã e, com ela, a infância e alguns 
[pasteizinhos
[pasteizinhos
Do céu da mãe enferma cobrando visitas.
Adolescentes que passavam trouxeram excitações dos últimos 
[filmes
[filmes
E revistas de cenas indecentes, e era plena tarde.
Plena a tarde do morto diante do sol na paisagem.
Lembrara-se da eterna diva, do desejo de antes, e de como era 
[o corpo na cama.
[o corpo na cama.
Mas o corpo exatamente, alimentado, limpo, escanhoado, e que 
[é vestido
[é vestido
De linho e caxemira para a comunhão.  
E um que era pequeno, esguio e branco numa caixa de música, 
[varanda e claraboia
[varanda e claraboia
Que, em torno do eixo, era viva no abrir da porta.
Então quase dormiu por imitar como se encolhem as pernas, no 
[sono.
[sono.
II
Na paisagem, o morto era apenas ideia fustigada. E eterno o 
[fenômeno do sol.
[fenômeno do sol.
Animais de pastagem passaram moles, cheios de massa.
Animais de carga passaram velhos de sacrifícios - e dignos por 
[conhecerem a chuva -, e o sol,
[conhecerem a chuva -, e o sol,
na paisagem acontecendo, derretia o espaço de terra e calor 
[suspenso
[suspenso
em que as rodas rolam gelatinosas desfazendo-se
sobre o caminho por onde todos passaram pretejando o mato, 
vergando o talo daquilo que, sendo verde, precisa suster. 
Nenhuma noite mais alivia a paisagem e o morto de ideias.
E o sol dá continuidade ao que, aos poucos, na paisagem se 
[extingue.
[extingue.
O morto na paisagem cataloga todas as coisas últimas que o sol 
[abate.
[abate.
O leão teve toda uma página, apenas um e último leão. Entre 
[dez repetições da palavra juba.
[dez repetições da palavra juba.
Entre vinte repetições da palavra urro. Uma ocorrência da 
[palavra carne.
[palavra carne.
O cão, especialíssimo, teve verbete ilustrado e, aos pés do 
[morto, adormeceu na paisagem.
[morto, adormeceu na paisagem.
III
O morto na paisagem está rijo em meio-fraque, circundado de 
[crescente e perfumosa mirra, aguardando
[crescente e perfumosa mirra, aguardando
O rastilho em guipure e pérola do longo véu da última chegada.
Essa que passou e já vai longe – então liberta do cruel
Eixo imóvel de dez mil livros em brochura empilhados 
(de vozes insistentes nas lombadas, tal rostos 
de família suspensos num corredor que nos leva à 
[espiral da escada,
[espiral da escada,
a suscitar a memória que se guarda sem ser nossa, e, 
[junto, toda a casa
[junto, toda a casa
pendente sobre a cabeça em fadiga e íntimo romance 
[biográfico)
[biográfico)
Pela pequena caixa de quarto e sala em que reinava, esguia e 
[branca,
[branca,
A mulher dos sonhos, envolta em arminho, varanda e claraboia;
Desde sempre esgueirando o vazio deixado aos seus cuidados, 
[silenciosa como
[silenciosa como
Algum vago, baço pensamento a mais de alguém que existe,  
[sob o sol na paisagem, fustigado.
[sob o sol na paisagem, fustigado.
Essa lembrança que, inferno e mármore, resiste a toda história – 
E segue de ossos fracos, ao cruzar a porta.
 

 

 

 
 
 
 
 
 
 

 
 
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2 comentários:
Muito intenso esses versos, lembrou-me muito Eliot.
Parece a fotografia de uma pintura na visão desse "morto de idéias" que você comenta.
Parabéns e abraço
Acabei de conhecer tua poesia no blog do Hilton Valeriano. Que bela surpresa! Estou te linkando no longitudes, ok? abraços. Nydia
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