REESCREVENDO "DOS CANIBAIS" DE MONTAIGNE
ou
Entre o sonho, a vida e a virtualidade
Buster Keaton
Reescrevendo “Na galeria” de Kafka
Entre o sonho, a vida e a virtualidade
Buster Keaton
Sempre gosto de comentar com alguém os
meus sonhos. Quando ainda tinha tempo e hábito de escrever e-mails longos aos
amigos, costumava falar de algum sonho, quanto mais estranho e significativo
parecesse. Este aconteceu há um ano, talvez, um pouco menos. Quando uma
ex-aluna ligava para avisar que havia vídeos meus na internet, eu pensava
apenas em situações das mais vexatórias. Também no sonho, eu sofria com a minha
intensa ansiedade do mundo virtual.
De fato, os vídeos eram vários, mas não
havia som, apenas imagens. Em alguns, eu estava sozinha, no cotidiano do meu antigo
apartamento e do meu caminho. Eram cenas da minha vida. Eu passando pelo
corredor, eu arrumando o armário, eu cantando sozinha, eu dançando alguma
música, eu lendo, eu escrevendo, eu feliz, eu chorando, eu irritada. Em outros,
havia pessoas familiares, e vivíamos cenas diversas. Algum cuidado, algum
embaraço, algum desembaraço, algum amor, alguma briga, alguma grande briga,
alguma indiferença, e muitas cenas comuns de um cotidiano. Os vídeos eram muito
vistos e as pessoas achavam graça, o que se via pelos comentários, a maioria
feita de frases rasas, jocosas, com aquela típica linguagem, às vezes cretina,
dos comentários da internet.
Esses comentários me faziam olhar para
aquelas cenas com profunda tristeza de saber que os que as assistiam olhavam-nas
como se fossem coisas patéticas, como quem analisa a movimentação vazia dos
braços de um macaco.
Foi doloroso perceber que, no final das
contas, pra vida que acontece alheia, a vida do agora de cada um, mesmo o que
foi mais importante pra nós, mesmo a grande alegria do feliz acontecimento e
mesmo o que tentamos esquecer para poder continuar não têm qualquer sentido, e
podem ser tomados como num filme do Buster Keaton, em que as coisas deixam
sempre de funcionar como coisas que eram ou são, e um peixe-espada no fundo do
mar vira um florete de esgrima, para o ajuste do cômico com o patético – e o
personagem do Keaton com aquele jeito extravagante de andar e de nunca sorrir,
sempre a perder o chapéu para o vento, ou girando em círculos no convés de um
navio deserto, tentando alcançar a única pessoa a bordo, a moça que também gira
em círculos tentando ser alcançada. E, ao final, resgatados da solidão, do
perigo dos canibais e do desencontro, por um beijo de amor inesperado, o
personagem se apoia sobre a alavanca, e o submarino, que os salvara da
desesperança da eterna deriva, volteia invertendo chão e teto sem parar.
Vistos assim, num cinema mudo, podemos
ser todos patéticos se entramos, por acaso, num navio deserto que acaba à
deriva em alto-mar, mas os gestos, mesmo atrapalhados, são sinceros, são ternos
e cumprem com a promessa do riso, e aquela promessa de felicidade que Caetano
enxergou no mar, no sol e nos barcos da Bossa. Mas no sonho de alguns meses,
talvez pela falta do preto e branco, os vídeos silenciosos mostravam apenas
corpos e cômodos desarticulados, como pode ser um passado num presente ou como
o que é pessoalíssimo quando não há pessoas que percebam os significados.
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Reescrevendo “Na galeria” de Kafka
ou
Tudo o que se quer do amor
ISMAEL NERY - ANUNCIAÇÃO
Entristece agora pensar em tudo o
que quero de nós e para nós, entristece como não deveria. Entristece pensar no
quanto pareço disposta a arrumar os sonhos, a começar pelos menores e os que
aqui já estão vivendo, um pouco do bom que somos. Saber que há mãos dispostas
em mim para esse amor, há toda a minha alma tentando saber da
praticidade e da estratégia de ser forte e cortante ao longo do dia lá fora, e
ternura nas noites e na alegria dos feriados. Há tudo isso por um nome, uma imagem que perscruto do canto da porta,
onde quarto e sala se encontram, na minha vigília para constatar o tamanho, a
cor, os traços de um homem na hora em que se afasta. Alcanço e perco quem sou de instante em instante.
A insegurança antiga que não me deixa e que pede “diz que é irreal o que vejo
partindo, mais um pouco, no seu silêncio”. Confessar
o estranho na alma, apontar o fracasso e contar com a solidez do amor que foi
dito. Têm sido isso os gestos de cuidado. A espera do romance. Os romances lidos. Sempre acabo diante da velha descoberta, a literatura estraga a vida, e
as delicadezas dos sonhos que cultivei para ser a mulher que pretendia ser, do
inefável... Sou ideal para mim mesma, mas
sempre tropeço nos próprios pés como se fossem tortos. Alguém ri na galeria?
Procurei hoje o conto de Kafka no
passeio que inventei para resgatar o dia de mim mesma, insegura do silêncio que
ele faz, intransponível - aquela moça equilibrada no cavalo de picadeiro,
exausta. Não consegui nada. E ele sempre acha algo que queira, então
reflito que minha especificidade é tola e romântica, coloco-me entre tudo ou
nada na livraria. Posso sair de mãos
vazias de qualquer busca exigindo, da arrumação incômoda das estantes, o
perfeito achado. E o idealismo aqui não é o objeto sagrado de minha
demanda, um livro ou a declaração que sossegaria o aperto aflitivo de um mau presságio;
é preciso pensar que encontrar, diante de uma luz estranha, no final da tarde, uma nova imagem de sua própria mão no curso
de um gesto ou mais um som da voz que se ama, um sentido inteiro, mesmo que ainda incompreensível, formando um
pensamento ou um novo encanto sobre o mesmo amor, ou uma firmeza na alma,
não pode deixar resistir a ideia do fracasso. Deixar o fracasso é sempre
indolência e fraqueza. Algo existe de Graal em caminhar ao lado de um esperado
encontro. Termino o dia apostando que perdi mais do que suponho, termino o dia
triste pelo custo do futuro. Os bons amores de cuidados mútuos e risos quando
as diferenças podem fazer estrago, porque sempre podem, os bons amores dos
quais temos notícias quando retornam das férias. Não deve ser difícil ser.
Então, resolver tudo num “Deixa disso...” e o apelido íntimo, tomar a mão e
seguir para o filme, entendendo que há aqueles dias, então se poderia
reinventar o conto. Quem sabe ele também
observe, encostado à porta onde quarto e sala se encontram, e saiba o quanto
sou frágil e de pés tortos longe de nós. O jovem inconformado que grita desce as fileiras da assistência, salva
da exaustão a moça no espetáculo do medo, do fracasso e do engano de um dia ou
de toda a semana ou de uma vida. Fidelidades do amor. Mas de nada do amor
tratava o conto de Kafka.
Miranda
***
Na Galeria
Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida
meses sem interrupção ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de
um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso e de chicote na mão,
sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se
esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre
cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado
pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são
martelos a vapor — talvez então um jovem espectador da galeria descesse às
pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e
bradasse o basta! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se adaptar
às situações.
Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em
branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados
de libré abrem diante dela; o diretor, que busca abnegadamente seus olhos,
respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cauteloso sobre o
alazão como se ela fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem
perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal
dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo;
segue com o olhar agudo os saltos de amazona; mal pode entender sua destreza;
procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros
que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à
orquestra para que faça silêncio antes do grande salto mortal; finalmente alça
a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente
nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na
ponta dos pés, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer
partilhar sua felicidade com o circo inteiro — uma vez que é assim o espectador
da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como
num sonho pesado, chora sem o saber.
Kafka
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