CANTUS FIRMUS

REESCREVENDO "DOS CANIBAIS" DE MONTAIGNE
ou
Entre o sonho, a vida e a virtualidade


Buster Keaton


Sempre gosto de comentar com alguém os meus sonhos. Quando ainda tinha tempo e hábito de escrever e-mails longos aos amigos, costumava falar de algum sonho, quanto mais estranho e significativo parecesse. Este aconteceu há um ano, talvez, um pouco menos. Quando uma ex-aluna ligava para avisar que havia vídeos meus na internet, eu pensava apenas em situações das mais vexatórias. Também no sonho, eu sofria com a minha intensa ansiedade do mundo virtual.
De fato, os vídeos eram vários, mas não havia som, apenas imagens. Em alguns, eu estava sozinha, no cotidiano do meu antigo apartamento e do meu caminho. Eram cenas da minha vida. Eu passando pelo corredor, eu arrumando o armário, eu cantando sozinha, eu dançando alguma música, eu lendo, eu escrevendo, eu feliz, eu chorando, eu irritada. Em outros, havia pessoas familiares, e vivíamos cenas diversas. Algum cuidado, algum embaraço, algum desembaraço, algum amor, alguma briga, alguma grande briga, alguma indiferença, e muitas cenas comuns de um cotidiano. Os vídeos eram muito vistos e as pessoas achavam graça, o que se via pelos comentários, a maioria feita de frases rasas, jocosas, com aquela típica linguagem, às vezes cretina, dos comentários da internet. 
Esses comentários me faziam olhar para aquelas cenas com profunda tristeza de saber que os que as assistiam olhavam-nas como se fossem coisas patéticas, como quem analisa a movimentação vazia dos braços de um macaco.
Foi doloroso perceber que, no final das contas, pra vida que acontece alheia, a vida do agora de cada um, mesmo o que foi mais importante pra nós, mesmo a grande alegria do feliz acontecimento e mesmo o que tentamos esquecer para poder continuar não têm qualquer sentido, e podem ser tomados como num filme do Buster Keaton, em que as coisas deixam sempre de funcionar como coisas que eram ou são, e um peixe-espada no fundo do mar vira um florete de esgrima, para o ajuste do cômico com o patético – e o personagem do Keaton com aquele jeito extravagante de andar e de nunca sorrir, sempre a perder o chapéu para o vento, ou girando em círculos no convés de um navio deserto, tentando alcançar a única pessoa a bordo, a moça que também gira em círculos tentando ser alcançada. E, ao final, resgatados da solidão, do perigo dos canibais e do desencontro, por um beijo de amor inesperado, o personagem se apoia sobre a alavanca, e o submarino, que os salvara da desesperança da eterna deriva, volteia invertendo chão e teto sem parar. 
Vistos assim, num cinema mudo, podemos ser todos patéticos se entramos, por acaso, num navio deserto que acaba à deriva em alto-mar, mas os gestos, mesmo atrapalhados, são sinceros, são ternos e cumprem com a promessa do riso, e aquela promessa de felicidade que Caetano enxergou no mar, no sol e nos barcos da Bossa. Mas no sonho de alguns meses, talvez pela falta do preto e branco, os vídeos silenciosos mostravam apenas corpos e cômodos desarticulados, como pode ser um passado num presente ou como o que é pessoalíssimo quando não há pessoas que percebam os significados. 

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Reescrevendo “Na galeria” de Kafka 
ou
Tudo o que se quer do amor


ISMAEL NERY - ANUNCIAÇÃO

Entristece agora pensar em tudo o que quero de nós e para nós, entristece como não deveria. Entristece pensar no quanto pareço disposta a arrumar os sonhos, a começar pelos menores e os que aqui já estão vivendo, um pouco do bom que somos. Saber que há mãos dispostas em mim para esse amor, há toda a minha alma tentando saber da praticidade e da estratégia de ser forte e cortante ao longo do dia lá fora, e ternura nas noites e na alegria dos feriados. Há tudo isso por um nome, uma imagem que perscruto do canto da porta, onde quarto e sala se encontram, na minha vigília para constatar o tamanho, a cor, os traços de um homem na hora em que se afasta.  Alcanço e perco quem sou de instante em instante. A insegurança antiga que não me deixa e que pede “diz que é irreal o que vejo partindo, mais um pouco, no seu silêncio”. Confessar o estranho na alma, apontar o fracasso e contar com a solidez do amor que foi dito. Têm sido isso os gestos de cuidado. A espera do romance. Os romances lidos. Sempre acabo diante da velha descoberta, a literatura estraga a vida, e as delicadezas dos sonhos que cultivei para ser a mulher que pretendia ser, do inefável... Sou ideal para mim mesma, mas sempre tropeço nos próprios pés como se fossem tortos. Alguém ri na galeria? Procurei hoje o conto de Kafka no passeio que inventei para resgatar o dia de mim mesma, insegura do silêncio que ele faz, intransponível - aquela moça equilibrada no cavalo de picadeiro, exausta. Não consegui nada. E ele sempre acha algo que queira, então reflito que minha especificidade é tola e romântica, coloco-me entre tudo ou nada na livraria. Posso sair de mãos vazias de qualquer busca exigindo, da arrumação incômoda das estantes, o perfeito achado. E o idealismo aqui não é o objeto sagrado de minha demanda, um livro ou a declaração que sossegaria o aperto aflitivo de um mau presságio; é preciso pensar que encontrar, diante de uma luz estranha, no final da tarde, uma nova imagem de sua própria mão no curso de um gesto ou mais um som da voz que se ama, um sentido inteiro, mesmo que ainda incompreensível, formando um pensamento ou um novo encanto sobre o mesmo amor, ou uma firmeza na alma, não pode deixar resistir a ideia do fracasso. Deixar o fracasso é sempre indolência e fraqueza. Algo existe de Graal em caminhar ao lado de um esperado encontro. Termino o dia apostando que perdi mais do que suponho, termino o dia triste pelo custo do futuro. Os bons amores de cuidados mútuos e risos quando as diferenças podem fazer estrago, porque sempre podem, os bons amores dos quais temos notícias quando retornam das férias. Não deve ser difícil ser. Então, resolver tudo num “Deixa disso...” e o apelido íntimo, tomar a mão e seguir para o filme, entendendo que há aqueles dias, então se poderia reinventar o conto. Quem sabe ele também observe, encostado à porta onde quarto e sala se encontram, e saiba o quanto sou frágil e de pés tortos longe de nós. O jovem inconformado que grita desce as fileiras da assistência, salva da exaustão a moça no espetáculo do medo, do fracasso e do engano de um dia ou de toda a semana ou de uma vida. Fidelidades do amor. Mas de nada do amor tratava o conto de Kafka.


Miranda

***

Na Galeria

Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso e de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são martelos a vapor — talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se adaptar às situações.
Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela; o diretor, que busca abnegadamente seus olhos, respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cauteloso sobre o alazão como se ela fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com o olhar agudo os saltos de amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do grande salto mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o circo inteiro — uma vez que é assim o espectador da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber.

Kafka 

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