segunda-feira, 11 de março de 2013

A CASA DE USHER - poema 17



A CASA DE USHER


E se a vida não é o centro da sala,
Mas os móveis recolhidos às paredes,
As divisórias, os arcos das portas,
o corredor nu? Os ossos, os cabelos, a pele.
Da mesa de centro, com o mesmo esforço alcanço todos os 
                                                                                          [lados.
E posso estar certa de que tudo se apazigua sendo meu,
Se eu não precisar levar às mãos ao rosto e me dar conta.


E eu penso em quando eu estiver definitivamente só
E as paredes com os móveis recolhidos forem meu único 
                                                                                  [orgulho
Tão humano. O cheiro adocicado e novo que os velhos armários
                                                                                             [terão
A angústia morta por ser já tão tarde para dizer 
“há risco de que me mate nesta vida”,
Renovada a cada entrada de março.
E ninguém acreditará que tive pais, avós, um berço,
E eu também não saberia dizer com detalhes.


Estou no tempo limite do apego preciso às coisas.
Compro, peça a peça, a minha mobília.
Vou, eu mesma, arrastando-a até as paredes, desde o centro 
                                                                                     [da sala,
Para que nos reconheçamos na final solidão da casa.




Figuras femininas - Ismael Nery

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

FAROL - poema 16


FAROL

Não consigo descrever a sensação de solidão que senti quando compreendi que estava no meu lugar; era cedo demais para entender o fardo da posse, ser dono de algo que não podia ser abandonado ou desapropriado, que devia ser guardado para sempre. Janet Frame


É que a noite tocou a todos pelo caminho,
como um homem toca o seu boi ao bebedouro,
e estão em suas casas guardados,
depois de beber calmamente.
E não há um pensamento sequer
sobre o que pode haver nesta hora em que falo:
As árvores escurecidas, como entes assombrados,
perdem a nitidez, qual tio amado que, agora
morto, faz mover as cortinas, faz insegura
toda a fiel casa da duração do dia,
nosso coração em sobressalto, atentos aos retratos
íntimos sobre os pianos –  qualquer sussurro
de um nome, uma tecla em desafino –, sorrindo,
os mortos e os vivos.  

Nada se move, é noite ainda.
Pois chega essa hora em que os objetos
perdem a comunhão conosco.
A casa é o que nos sobra, no escuro, por dentro,
trancados, quase pacíficos, esperando a hora
em que nossos irmãos respeitam o silêncio,
e eis que chega o sono como a insinuação da sorte:
Protegei-vos.  

Do outro lado da rua, uma casa do lado de fora
é inteira amaldiçoada, se nela
promiscuem-se as silhuetas das grades,
os pilares carcomidos,
as gaiolinhas de pássaros dormindo,
as trepadeiras em sombras
numa tela de musgos e fachadas.

Mas guardada está a vizinhança bendita,
e benditos os seus silêncios,
e os copos que não deixam cair ao chão,
os móveis que não arrastam,
os chinelos de pantufas no corredor do banheiro
e as dores contidas, sem um gemido sequer,
e os irmãos encolhidos sobre os abdomens.
Todos trocam cuidados.

É que para todos chega a hora em que é impossível
pensar a rua enegrecida,
para além das portas e janelas e vigilantes...
As praças desertas petrificadas, o quebra-mar infinito
como uma fortificação de nossa extensa península, e
a ansiedade de que padecem as avenidas vazias,
porque também numa guerra
os soldados dormem, invisíveis nas covas, entre pesadelos.

Estou agora a me mover pelos canteiros centrais até alcançar a orla.
Passo praças e o quebra-mar infinito nesse meu sonho vívido e só,
e o mar noturno que se recusa,
como a tudo ao que o olhar se esforça,
mas a nada distingue. Um navio mercante, uma baleia, o continente.

Fantasmagorias que impregnam a vida
e que são nossas – como um homem deixa
seu último hálito no cômodo em que se senta
com sua última consciência, gravados, ambos,
ali para sempre.

A noite não existe. Somos nós, massa indistinta.
E, ao final, os postes acesos guardam a promessa
de que tudo está ali, exatamente e
como sempre, passado o grande perigo que anulamos.

E assim, reacomodando nosso olho e nossa posse,
descobrimos, na manhã seguinte,
alguém a andar com nossas ideias de ontem,
e alguma coisa de um hálito, de um cômodo, ou marinheiro,
um traço seu antigo – de vida ou sentimento,
doendo na nossa alma e sem ter nome –,
que se mistifica na história que terá o dia.

Outubro, 2011


Ismael Nery - sem título

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Cantus Firmus, Poslúdio e Bel Canto



O cantus firmus é uma prática de composição medieval em que uma melodia já existente é usada como base para novas melodias, uma música polifônica. A seção que tem esse nome, situada na lateral direita do blog, é um espaço para textos que surgem a partir da ideia central, ou do sentido, de algum famoso texto da tradição literária. Dois cantus firmus já estão lá, “Dos canibais” (Montaigne) e “Na galeria” (Kafka). Prosas com o discurso do diário íntimo, da crônica curta ou do comentário sensível.


Na seção Poslúdio, há o texto crítico-teórico do professor de Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia, José Welton Ferreira dos Santos Júnior, sobre o livro Ritos de Espelho (2002). O texto foi apresentado na Academia de Letras da Bahia, durante o IV Colóquio de Poesia Baiana, e como trabalho de conclusão da disciplina de Teoria da Lírica, do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL) do Instituto de Letras da UFBA, ambos em 2009.


Bel canto é o espaço criado especialmente para um texto afetivo - meio poético, meio filosófico. Uma carta aberta de conteúdo amoroso do poeta e crítico Henrique Wagner, publicada originalmente em uma de suas colunas do site de arte Expoart.



domingo, 9 de setembro de 2012

SAÍDA DE EMERGÊNCIA




Criei uma nova página no Intermezzi da blogópera, a Saída de Emergência, aquelas informações necessárias para a preservação da vida antes de qualquer espetáculo. Um espaço que já existia (último item da barra de gadgets do blog) como portas de emergência na lateral desta sala operística, para divulgação de banners eletrônicos de campanhas humanitárias que encaminham os visitantes para os espaços virtuais específicos desses projetos. Contudo, achei necessário uma palavra minha, minha experiência pessoal sobre este projeto específico que é o Caminho Nações, porque sei que é difícil saber da seriedade de uma instituição ou grupo e apostar que as coisas funcionem tal como eles dizem apenas pelo que eles dizem. Cliquem na legenda da foto acima ou na própria Saída de Emergência para conhecer a nova página do IntermezziEspero que vocês possam perder um tempinho dando uma lida no meu texto, assistindo aos vídeos da campanha e conhecendo o pessoal que faz essa história funcionar. 

terça-feira, 26 de junho de 2012

SE SOU POETA - (poema dedicado)


John Waterhouse

SE SOU POETA

à Fabrícia Miranda
Com que paixão vejo o desenho de seu corpo
onde seu corpo já não dorme e permanece
na depressão do sono extinto e do conforto
amanhecido sob o sol, verão sem pressa.

Com que paixão o espreguiçar eu logo ouço
e não há nada além das faces numa réstia
que me desperta para o bem de um tempo outro,
mas que me acorda e é todo o sonho que me resta.

Quero dormir e não consigo, é tarde ainda.
Somente a noite me conduz ao que nos finda
- e eu sei que a vida jamais vive a vida em vão.

Se sou poeta, é porque sonho minha musa
e reconheço, em carne viva, uma difusa
ausência agora... um pobre, enfim, com que paixão!


Henrique Wagner

John Waterhouse


Obs. do autor: Este soneto não é feito de alexandrinos, mas de de dodecassílabos. São metros distintos entre si. No alexandrino é obrigatório haver uma cesura na sexta tônica, com regras envolvendo a tonicidade das palavras e suas vogais finais. Como o primeiro verso me chegou à cabeça com três tônicas obrigatórias sem cesura (na quarta sílaba, na oitava e na décima segunda), decidi não mexer e fazer o resto do soneto com esse metro, essa cadência. E as rimas são deliberadamente toantes nos quartetos, e consoantes nos tercetos, porque penso que nos tercetos tudo deve soar como um gran finale mesmo.
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