POSLÚDIO

Ritos de Espelho: o sujeito amante no espelho, na poesia de Fabrícia Miranda
José Welton Ferreira dos Santos Júnior[1]

(...)
Em Ritos de Espelho (2002), de Fabrícia Miranda, penetramos alguns dos labirintos que se colocam ao pensar a relação do sujeito com o objeto especular. Para além de alguma situação cômoda em que imagens se constituem de forma clara, deparamo-nos com a fulguração de um sujeito lírico amante que se dramatiza na linguagem à medida que se situa diante do mundo, num jogo dialético que articula verdade e ilusão, apontando para o desejo de ver-se e de mostrar-se.
Nessa ótica, não é o estar diante do espelho, mas o ser. Sobre isso, Gaston Barchelard (1989) diz que “ao ser diante do espelho pode-se sempre fazer uma pergunta: para quem se estás te mirando? Contra o que estás te mirando? Tomas consciência de tua beleza ou de tua força?” (p.23). É o processo de revelação/construção do sujeito, processo inexorável de naturalização da nossa imagem, embora nesse momento se dê também o susto de se saber minimamente dois, senão muitos.
Sobre o jogo revelador/construtor do eu diante do espelho, o poema Espelhinho que se traz na bolsa diz: “Eu que me sei tão pouco, / já não me olho no espelho / Para não mais me enganar” (MIRANDA, p.11). Vê-se um jogo de revelação e mistério, certezas, ou a recusa dessas, e engano. Já no título isso se evidencia. O espelho, signo de revelação, que traz a verdade está guardado na bolsa, constrói-se a imagem de um segredo; uma revelação que vai escondida na bolsa.
O sujeito poético que se enuncia verbalmente no pronome pessoal eu assume sua condição de desconhecimento sobre si. O espelho traria, portanto, a possibilidade de conhecimento, autoconhecimento. Eis a transgressão: o sujeito poético recusa olhar-se no espelho para não se enganar. Ora, traria enganos o espelho? Se pensarmos que a imagem especular é constituída em parte pelo eu enunciador, pode-se pensar que sim. É o próprio eu que se engana; vê, numa atitude narcisística, o que lhe interessa no espelho e acaba por estabelecer um pacto unilateral, trazendo novamente o narcisismo – a preponderância do ego. Não sabe de si e nega a possibilidade do espelho revelar/construir a imagem, talvez porque esse espelho esteja impregnado demasiadamente desse eu, impedindo que o objeto especular traga a alteridade e, portanto, traga as marcas imponderáveis desse eu. O eu, embora negue, paradoxalmente, sabe o poder revelador do espelho e prefere se manter alheio a esse poder, negando duplamente o engano provocado pelo espelho e a capacidade implícita do espelho revelar a alteridade que habita o ser, o outro não será desvelado.
Com um texto construído em paradoxos aparentemente inconciliáveis, lícitos à poesia, Fabrícia Miranda tece seus versos num deslocamento permanente entre o objeto e o eu poético, ratificando, mas também transgredindo, o paradigma clássico em que o objeto se funde ao eu. A fusão permanece, mas o signo garante autonomia, na medida em que faz parte do mundo construído, isto é, o espelho precisa existir como signo que possibilita o eu tomar consciência de si, mesmo que essa consciência provoque a vertigem desse eu ao saber-se múltiplo.
Nessa atitude de escritura, o poema de Fabrícia Miranda constitui como corpo vivo, não apenas como veículo, carcaça para a enunciação de um determinado estado de alma, atitude que relegou à poesia um denso mergulho na subjetividade, condicionando o objeto ao sujeito poético. Ao contrário, na poesia de Fabrícia Miranda, os objetos estabelecem teias de comunicação com o sujeito poético, sem desencadear, necessariamente, subordinações ou fusões intensas que reduzem o papel do signo lingüístico na tessitura do texto poético.
(...)

Lançando mão do caráter simbólico do espelho como objeto possibilitador do (re)encontro do eu consigo mesmo a partir da percepção da multiplicidade que o compõe, adentraremos terrenos mais instáveis da poesia de Fabrícia Miranda. Interessa-nos, precisamente agora, como imagens do amor são construídas pelo eu que se coloca diante do espelho, não se esquecendo, contudo, que tanto o espelho como o amor são projeções desse eu.
Nesse estágio, entendemos por espelho a capacidade de reflexo e de refração que o eu desencadeia no processo de construção de imagens de si. Tentaremos flagrar como o eu poético se deslinda amante diante do espelho e como esse desvelamento pode significar um estágio rumo à vertigem, quer seja pelo poder de multiplicação desse eu e do mundo, como em Borges; quer seja por saber que a beleza refletida e almejada na textura raso-funda do espelho não pode ser de todo apreendida, porque é alteridade, como em Narciso, que experimentou uma frustração mórbida ao ver seu objeto de desejo se desfazer ao seu toque. O texto de amor de Fabrícia Miranda se dá como a própria construção/revelação do que significa o amor, alimentado por experiências amorosas vividas ou lidas, como quer Cássia Lopes, na orelha do livro. Dessa forma, implicitamente, o signo especular aparece, como foi dito, psicanaliticamente e artisticamente como objeto que possibilita o eu tomar consciência de si. Isto é, no texto amoroso, um sujeito poético amante se mostra, mas também se vê diante de suas experiências, dramatizando-se no espaço poético.
Observamos no espelho poético de Fabrícia Miranda espraiar-se um sujeito poético paradoxal diante do mundo, um sujeito que constrói ou percebe os movimentos da vida e se inscreve nesta. Em Uma música para nós, vislumbram-se elementos instigantes desde o título: a música, que recupera a tradição do poeta cantor e assinala um lugar especial no conjunto de poemas porque reitera a noção ritualística apontada no título do livro. Assim, o eu situa-se como poeta e cantor, que canta uma música para um nós, identifica-se, pois, a presença do outro:

Num dia triste/de tristeza implícita/ chorei a densa noite de tragédias e sustos/ e teci fios de sofrer/ mas apaguei a luz para que meu irmão dormisse seu sono /  e minha mãe me disse adeus de lá bem longe./ Não foi tudo/ mas o amor sempre traça laços ocultos/ mesmo num adeus, mesmo num acalanto, / entre  os que se vão pra longe ou os que dormem ao lado/ Num dia triste/ de tristeza implícita/ chorei a densa noite de tragédias/ até que vi um ressonar e um aceno. (p.20)

Aqui, a imagem do espelho não aparece marcada por signos textuais; mas lá está o sujeito amante e, nesse caso, podemos ser espelhos nós, leitores, o texto ou o mundo. Dessa maneira, vamos ouvindo/vendo a música da poeta-cantora à medida que também nos mostramos ao poema, compartilhamos, portanto, nossas tantas músicas inventadas quando apaixonados.
O início do poema nos desperta para o ato de criação verbalizado pelo sujeito lírico amante, quando diz: “Num dia triste/ de tristeza implícita[...] teci fios de sofrer” (p.20). O sujeito poético tece e não encontra pronto. O processo de criação ganha, portanto, espaço na tessitura do poema. O sofrimento construído é experienciado na clausura no silêncio, na tentativa de fechar-se numa experiência que apenas ganha vazão dramática na poesia. O sujeito amante estabelece, portanto, uma nova relação com o tempo e espaço, que, por muito particular, indica uma vivência à parte, uma penetração nos caminhos oblíquos do amor, tendo por companhia legitima só o ser amado. Zygmunt Baumam (2004) atenta para o fato de que o amor aprisiona, num processo de destruição e autodestruição, porque os sujeitos amantes se colocam numa busca permanente para a redução da alteridade que encerra a relação. Embora o poema em questão não traga o ser amado, implicitamente [e a tristeza é implícita], permanecem os rastros que a experiência amorosa provoca no sujeito, pois, ainda segundo Baumam (2004), “fusão e subjugação parecem ser as únicas curas para o tormento” (p.23), porém é também esse estado de tensão que situa o sujeito num mundo particular, em que uma música secreta revela seu alheamento diante do mundo, restando apenas indícios de uma vida lá fora: um ressonar, um aceno.
O ato de tecer os fios de sofrer não é gratuito. Sua simbologia encarna a complexidade que o amor opera. Para Baumam (2004), o amor é um precipício, é uma experiência que beira o malogro. O sofrimento, a dor do sujeito por saber-se rendido: “amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar ordem” (p.23). Dessa forma, parece-nos materializado no poema um estado de tensão que se dá pela emergência de incertezas e fragilidades na experiência amorosa. Ainda no poema a imprevisibilidade do amor aparece com destaque: o amor sempre traça laços ocultos. Na conclusão de Baumam (2004), “o amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável” (p.24). É, pois, sob o signo da dúvida e da tensão que o sujeito amante se depara com o mundo.
Contudo, o poema aponta para um movimento que redimensiona a relação egocêntrica do sujeito lírico com a experiência amorosa. Tal aspecto pode ser observado na evocação das imagens do irmão e da mãe, que indiciam uma possibilidade de reintegração do sujeito. Nesse sentido, o aceno e ressonar são elementos de comunhão do eu poético com o mundo. Na superfície raso-funda do espelho poemático, vê-se, portanto, o sujeito deslizar de uma condição masoquista de tessitura de sofrimentos para um caminho de hipóteses, metaforicamente associado à existência de um mundo fora da experiência amorosa.
(...)

Outro poema significativo para a leitura do sujeito poético-amante diante do amor em Ritos de Espelho é O louco, o amor e máquina. Nesse poema, deparamo-nos com um outro movimento do sujeito lírico, se cotejado com os demais poemas em que aparece o amor, pois, o sujeito lírico torna-se mais implícito, fato pouco recorrente no livro, visto que há, nos demais poemas, a explicitação do sentimento amoroso por meio da própria subjetividade do eu poético.
            Deslocando-se estrategicamente do corpo textual, o eu poético situa-se como espectador de uma cena em que um certo lirismo dramático se encena. Chama-nos atenção o próprio título do poema que já permite a identificação das personagens que comporão a cena. As marcas narrativas servem para confirmar a diluição, se não total, mas evidente, entre as barreiras dos gêneros literários. Organizam-se, no corpo textual, cruzamentos formais e semânticos que potencializam as projeções imagéticas, constiutuindo um espaço onírico em que signos convencionalmente díspares se articulam sob a ótica de um sujeito poético: “O louco grita nomes feios aos carros que passam./ A máquina é insensível no destino de guiar /- pensa o louco” (MIRANDA, p.85)
O movimento de um louco, na sua condição de “anormalidade”, a transitar pela rua, deparando-se com a insensibilidade da máquina. A cena se constitui do encontro entre o louco e a moça. Tal encontro irá se materializar no corpo do poema. O sujeito lírico, como observador, flagra as nuances do encontro amoroso, construindo um espaço onírico por excelência em que as personagens figuram a materialização do amor, sendo, contudo, um encontro interdito, realizado no limiar da possibilidade de comunicação verbal, mas compartilhado nas impressões e experiências comungadas entre o louco, a moça, e o eu poético. A fala sobre a experiência poética se situará, pois, como uma dobra das impressões do eu nas figuras de seus outros: observa-se aí um jogo especular, em que a linguagem estabelece a mediação e põe em contato/confronto os sujeitos e seus espelhamentos: “Mas a moça que desce a ladeira não passa/ Ele sabe que dói o amor/ E para o louco, o amor é navalha/ Que traz o tétano” (MIRANDA, p.85)
            Marcando ainda esse lugar da linguagem como uma possibilidade de articulação entre os sujeitos e suas sensações enquanto amantes, o poema aponta para novos lugares em que o sentido de comunicação é posto em suspensão. Tal aspecto é perceptível na medida em que o texto lança mão da inserção do código de uma língua estrangeira, além de constituir um diálogo lacunar em que o louco e a moça aparecem veiculando um código secreto, não dito:

A moça fala francês:/ Comment tu t’appelles? – o louco pergunta/ Porque é o único francês de seus livros sem páginas/ O louco sonha,/
a moça lhe sorri de um avião: /- Je m’appelle, je m’appelle... – ela responde/ a frase pela metade. (MIRANDA, p.85-86)

Assim como aponta Octavio Paz (1993), o amor estabelece uma linguagem própria compreendida apenas entre os amantes. Uma língua se impõe como lugar de encontro da experiência amorosa dos amantes, apenas compartilhada por aqueles que aceitam enveredar pelos caminhos oblíquos do amor.
            Freqüentar os signos do amor e do espelho na poética de Fabrícia Miranda é percorrer um caminho repleto de cruzamentos, sobreposições e justaposições. As imagens que daí nascem revelam um jogo narcisístico que opera numa permanente dialética em que um sujeito se mostra, mas também se vê.
A dinâmica especular para além da demarcação linguística ultrapassa diluindo-se como tema em todo o livro, que evoca já no título os espelhos. Contudo, nos espelhos de Fabrícia Miranda nada se dá de modo reflexo ou transparente, o simples ato de fitar a imagem implica na percepção do estilhaçamento desse próprio sujeito que cola sobre o espelho esse aspecto fragmentário. Na experiência amorosa e suas representações, o sujeito lírico vai tecendo seus fios poéticos, numa complexa relação em que o sujeito assume no ato amoroso todas as ambivalências, deslocando o sentimento amoroso de um lugar idílico de plena realização para o âmbito da tensão, o que por sua vez é desdobrado na própria dinâmica da escritura. 
 Dessa forma, as elipses, lacunas, metáforas e metonímias que organizam o universo da poética especular de Fabricia Miranda dão a medida da inscrição vertiginosa que marca o processo de desvelamento da identidade fragmentada e movente do ser, tornando a poesia um lugar de trânsito em que os muitos que se mostram e que se vêm se re- inventam.

______________

[1] Professor de Literatura Brasileira e de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia e mestrando do Pós-Afro, CEAO/UFBA. – Trecho do texto apresentado na disciplina Teoria da Lírica – PPGLL – Instituto de Letras UFBA e no IV Colóquio de Poesia Baiana, na Academia de Letras da Bahia – 2009.

Foto: Margo Woode no filme Somewhere in the night, de Joseph L. Mankiewicz (1946)






Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...